SALMOS E CÂNTICOS POR JOÃO
PAULO II
(Audiências das quartas feiras
de 28 março 2001 a 1 outubro 2003)
Introdução
Os Salmos na Tradição da Igreja
1. Na Carta Apostólica Novo Millennio Ineunte manifestei o desejo de que a Igreja se distinga cada vez mais
na "arte da oração", aprendendo-a sempre de novo dos lábios do Mestre
divino (cf. n. 32). Este empenho deve ser vivido sobretudo na Liturgia, fonte e
auge da vida eclesial. Nesta linha é importante prestar uma maior atenção
pastoral à promoção da Liturgia das Horas como oração de todo o povo de Deus
(cf. ibid., 34). De facto, se os sacerdotes e os religiosos têm um precioso
mandamento para a celebrar, ela é contudo proposta ardentemente também aos
leigos.
Propunha esta finalidade, há
cerca de trinta anos, o meu venerado predecessor Paulo VI, com a constituição
Laudis Canticum na qual delineava o modelo vigente desta oração, desejando que
os Salmos e os Cânticos, estrutura básica da Liturgia das Horas, fossem
compreendidos "com renovado amor pelo Povo de Deus" (AAS 63 [1971],
532).
É encorajador o facto de muitos
leigos, quer nas paróquias quer nos agregados eclesiais, terem aprendido a
valorizá-la. Contudo, ela permanece uma oração que requer uma adequada formação
catequética e bíblica, para a poder apreciar profundamente.
Com esta finalidade, iniciamos
hoje uma série de catequeses sobre os Salmos e sobre os Cânticos propostos na
oração matutina das Laudes. Desta forma, desejo encorajar e ajudar todos a
rezar com as mesmas palavras usadas por Jesus e que se encontram há milênios na
oração de Israel e da Igreja.
2. Podemos introduzir-nos na
compreensão dos Salmos através de vários caminhos. O primeiro consistiria em
apresentar a sua estrutura literária, os seus autores, a sua formação, os
contextos em que surgiram. Depois, seria sugestiva uma leitura que realçasse o
seu carácter poético, que por vezes alcança níveis altíssimos de intuição
lírica e de expressão simbólica. Não menos interessante seria percorrer
novamente os Salmos considerando os vários sentimentos do ânimo humano que eles
manifestam: alegria, reconhecimento, ação de graças, amor, ternura, entusiasmo,
mas também sofrimento intenso, recriminação, pedido de ajuda e de justiça, que
por vezes acabam em cólera e imprecações. Nos Salmos, o ser humano encontra-se
a si próprio completamente.
A nossa leitura terá sobretudo
por finalidade evidenciar o significado religioso dos Salmos, mostrando como
eles, mesmo tendo sido escritos há tantos séculos por crentes hebreus, podem
ser incluídos na oração dos discípulos de Cristo. Por isso, deixar-nos-emos
ajudar pelos resultados da exegese, mas pôr-nos-emos juntos na escola da
Tradição, sobretudo escutando os Padres da Igreja.
3. Com efeito, com profunda
penetração espiritual, eles souberam discernir e indicar a grande
"chave" de leitura dos Salmos no próprio Cristo, na plenitude do seu
mistério. Os Padres estavam convencidos disto: nos Salmos fala-se de Cristo. De
facto, Jesus ressuscitado aplicou a si próprio os Salmos quando disse aos
discípulos: "era necessário que se cumprisse tudo quanto a Meu respeito
está escrito em Moisés, nos Profetas e nos Salmos" (Lc 24, 44). Os Padres
acrescentam que nos Salmos se fala a Cristo ou até que é Cristo quem fala.
Dizendo isto, eles não pensavam apenas na pessoa individual de Jesus, mas no Christus
totus, no Cristo total, formado por Cristo chefe e pelos seus membros.
Surge assim, para o cristão, a
possibilidade de ler o Saltério à luz de todo o mistério de Cristo.
Precisamente esta óptica faz emergir também a sua dimensão eclesial, que é
realçada de maneira particular pelo cântico coral dos Salmos. Compreende-se
desta forma como os Salmos tenham sido assumidos, desde os primeiros séculos,
como oração pelo Povo de Deus. Se, em alguns períodos históricos, se verificou
uma tendência para preferir outras orações, foi grande mérito dos monges manter
alta na Igreja a chama do Saltério. Um deles, S. Romualdo de Camaldoli, no
início do segundo milênio cristão, chegou a defender que como afirma o seu
biógrafo Bruno de Querfurt são os Salmos o único caminho para experimentar uma
oração verdadeiramente profunda: "Una via in psalmis" (Passio
sanctorum Benedicti et Johannes ac sociorum eorundem: MPH VI, 1983, 427).
4. Com esta afirmação, à
primeira vista exagerada, na realidade ele ancorava-se na melhor tradição dos
primeiros séculos cristãos, quando o Saltério se tinha tornado o livro por
excelência da oração eclesial. Esta foi à opção vencedora em relação às
tendências heréticas que continuamente atacavam a unidade de fé e de comunhão.
A respeito disto, é interessante a maravilhosa leitura que Santo Atanásio
escreveu a Marcelino na primeira metade do século IV quando a heresia ariana
alastrava atentando contra a fé na divindade de Cristo. Perante os hereges que
atraíam a si o povo também com cânticos e orações que eram agradáveis aos seus
sentimentos religiosos, o grande Padre da Igreja dedicou-se com todas as suas
energias a ensinar o Saltério transmitido pela Escritura (cf. PG 27, 12 ss.)
Foi assim que ao "Pai Nosso", a oração do Senhor por antonomásia, se
acrescentou a praxe, que depressa se tornou universal entre os batizados, da
oração dos Salmos.
5. Graças também à oração
comunitária dos Salmos, a consciência cristã recordou e compreendeu que é
impossível dirigir-se ao Pai que habita nos céus sem uma autêntica comunhão de
vida com os irmãos e as irmãs que habitam na terra. Além disso, inserindo-se
vitalmente na tradição orante dos hebreus, os cristãos aprenderam a rezar
cantando as magnalia Dei, isto é, as grandes maravilhas realizadas por Deus
quer na criação do mundo e da humanidade, quer na história de Israel e da
Igreja. Esta forma de oração tirada das Escrituras, não exclui decerto
expressões mais livres, e elas continuarão não só a caracterizar a oração
pessoal, mas também a enriquecer a própria oração litúrgica, por exemplo com
hinos e cânticos. O livro do Saltério permanece contudo a fonte ideal da oração
cristã, e nele se continuará a inspirar a Igreja no novo milénio.
(28 de março de 2001)
A Liturgia das Horas, oração da
Igreja
1. Antes de iniciar o
comentário de cada Salmo e Cânticos de Laudes, completemos hoje a reflexão
introdutória que começamos na última catequese. E fazemo-lo a partir de um
aspecto muito querido à tradição espiritual: cantando os Salmos, o cristão
experimenta uma espécie de sintonia entre o Espírito presente nas Escrituras e
o Espírito que nele habita pela graça batismal. Mais do que rezar com palavras
próprias, ele faz-se eco dos "gemidos inefáveis" de que fala São
Paulo (cf. Rm 8,26), com os quais o Espírito do Senhor impele os cristãos a
unirem-se à invocação característica de Jesus: "Abbá, Pai!" (Rm 8,15;
Gal 4,6).
Os antigos monges estavam de
tal modo seguros desta verdade, que não se preocupavam em cantar os Salmos na
própria língua materna, bastando-lhes a consciência de ser, de qualquer modo,
"órgãos" do Espírito Santo. Estavam convencidos de que a sua fé
permitiria aos versículos dos Salmos desencadearem uma particular
"energia" do Espírito Santo. A mesma convicção se manifesta na
característica utilização dos Salmos, que foi chamada "oração
jaculatória" da palavra latina "iaculum", isto é, dardo para
indicar brevíssimas expressões salmódicas que podiam ser "lançadas",
à maneira de pontas de fogo, por exemplo, contra as tentações. João Cassiano,
um escritor que viveu entre o IV e o V séculos, recorda que alguns monges
tinham descoberto a eficácia extraordinária do brevíssimo incipit do Salmo 69:
"dignai-vos, ó Deus, salvar-me; Senhor, apressai-Vos em socorrer-me",
que desde então se tornou como o pórtico de entrada na Liturgia das Horas (cf.
Conlationes, 10, 10; CPL 512, 298 ss).
2. Ao lado da presença do
Espírito Santo, uma outra dimensão importante é a da ação sacerdotal que Cristo
desenvolve na oração em que associa a si a Igreja, sua esposa. A tal propósito,
referindo-se propriamente à Liturgia das horas, o Concílio Vaticano II ensina:
"Jesus Cristo, Sumo Sacerdote da nova e eterna Aliança, [...] une a si
toda a humanidade e associa-a a este cântico divino de louvor. Continua este
múnus sacerdotal por intermédio da sua Igreja, que louva o Senhor sem cessar e
intercede pela salvação de todo o mundo, não só com a celebração da Eucaristia,
mas de vários outros modos, especialmente pela recitação do Ofício divino"
(Sacrosanctum Concilium, 83).
A Liturgia das Horas tem, também,
o carácter de oração pública, na qual a Igreja está particularmente envolvida.
É esclarecedor, então, descobrir como a Igreja definiu progressivamente este
seu empenho específico de oração dividida pelas várias fases do dia. É
necessário, por isso, recuar aos primeiros tempos da comunidade apostólica,
quando ainda estava em vigor uma estreita ligação entre a oração cristã e a
chamada "oração legal" assim prescrita pela Lei mosaica que se fazia
em determinadas horas do dia no Templo de Jerusalém. Pelo livro dos Atos
sabemos que os Apóstolos "como se tivessem uma só alma, frequentavam
diariamente o Templo" (2, 46), e também que "subiam ao templo para a
oração da nona hora" (3,1). E, por outra parte, sabemos também que as
"orações legais" por excelência eram precisamente as da manhã e da
tarde.
3. Pouco a pouco, os discípulos
de Jesus descobriram alguns Salmos particularmente apropriados a determinados
momentos do dia, da semana ou do ano, recolhendo neles um sentido profundo em
relação ao mistério cristão. É uma testemunha competente deste processo São
Cipriano, que assim escreve na primeira metade do século III: "É
necessário, de facto, rezar desde o início do dia para celebrar na oração da
manhã a ressurreição do Senhor. Isto corresponde ao que, uma vez, o Espírito
Santo indicava nos Salmos com estas palavras: “atendei à voz do meu clamor, ó
meu Rei e meu Deus”. A Vós é que rezo; pela manhã, Senhor, ouvis a minha voz,
mal nasce o dia exponho o meu pedido e aguardo ansiosamente" (Sal 5, 3-4).
[...] Quando, depois, o sol se põe e chega o fim do dia, é necessário pôr-se de
novo em oração. De facto, uma vez que Cristo é o verdadeiro sol e o verdadeiro
dia, no momento em que o sol e o dia do mundo chegam ao fim, pedindo através da
oração que a luz volte para nós, pedimos que Cristo volte a trazer-nos a graça
da luz eterna" (De oratione dominica, 35: PL,39, 655).
4. A tradição cristã não se
limitou a perpetuar a hebraica, mas renovou algumas coisas que acabaram por
caracterizar de modo diverso toda a experiência de oração vivida pelos
discípulos de Jesus. De facto, para além de recitarem, de manhã e pela tarde, o
Pai nosso, os cristãos escolheram com liberdade os Salmos para celebrar com
eles a sua oração de cada dia. Ao longo da história, este processo sugeriu a
utilização de determinados Salmos, particularmente significativos para alguns
momentos de fé. Entre estes, tinha o primeiro lugar a oração de vigília, que
preparava para o Dia do Senhor, o Domingo, em que se celebrava a Páscoa da
Ressurreição.
Uma característica tipicamente
cristã foi, posteriormente, o acrescentar no fim de cada Salmo e Cântico, da
doxologia trinitária, "Glória ao Pai e ao Filho e ao Espírito Santo".
Assim, cada Salmo e Cântico aparecem iluminados pela plenitude de Deus.
5. A oração cristã nasce,
alimenta-se e desenvolve-se à volta do acontecimento da fé por excelência, o
Mistério pascal de Cristo. Assim, de manhã e à tarde, ao nascer e ao pôr do
sol, se recordava a Páscoa, a passagem do Senhor da morte à vida. O símbolo de
Cristo "luz do mundo" aparece na lâmpada durante a oração de
Vésperas, também chamada por isso lucernário. As horas do dia lembram, por sua
vez, a narração da Paixão do Senhor, e a hora tércia a descida do Espírito
Santo no Pentecostes. A oração da noite, por fim, tem um carácter escatológico,
evocando a vigilância recomendada por Jesus na esperança da sua volta (cf. Mc
13, 35-37).
Cadenciando deste modo a sua
oração, os cristãos responderam ao mandamento do Senhor de "orar
incessantemente" (cf. Lc 18, 1; 21, 36; I Ts 5, 17); Ef 6, 18), mas sem
esquecer que toda a vida deve, de qualquer modo, tornar-se oração. Orígenes
escreve a este propósito: "Reza sem cessar aquele que une a oração às
obras e as obras à oração" (Sobre a oração XII, 2; PG 11, 452 C).
Este horizonte, no seu
conjunto, constitui o ambiente natural da recitação dos Salmos. Se eles são
assim sentidos e vividos, a doxologia trinitária que coroa cada Salmo torna-se,
para cada um dos que acreditam em Cristo, um contínuo mergulhar, sobre as ondas
do Espírito e em comunhão com todo o povo de Deus, no oceano de vida e de paz
em que está imerso com o Batismo, ou seja, no mistério do Pai, do Filho e do
Espírito Santo.
(4 de abril de 2001)
Catequeses de São João Paulo II sobre os salmos (Espanhol)
Reflexões de Bento XVI sobre os salmos (Espanhol)
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