sexta-feira, 12 de agosto de 2016

Os Salmos na Tradição da Igreja - São João Paulo II



SALMOS E CÂNTICOS POR JOÃO PAULO II
(Audiências das quartas feiras de 28 março 2001 a 1 outubro 2003)

Introdução

Os Salmos na Tradição da Igreja

1. Na Carta Apostólica Novo Millennio Ineunte manifestei o desejo de que a Igreja se distinga cada vez mais na "arte da oração", aprendendo-a sempre de novo dos lábios do Mestre divino (cf. n. 32). Este empenho deve ser vivido sobretudo na Liturgia, fonte e auge da vida eclesial. Nesta linha é importante prestar uma maior atenção pastoral à promoção da Liturgia das Horas como oração de todo o povo de Deus (cf. ibid., 34). De facto, se os sacerdotes e os religiosos têm um precioso mandamento para a celebrar, ela é contudo proposta ardentemente também aos leigos.

Propunha esta finalidade, há cerca de trinta anos, o meu venerado predecessor Paulo VI, com a constituição Laudis Canticum na qual delineava o modelo vigente desta oração, desejando que os Salmos e os Cânticos, estrutura básica da Liturgia das Horas, fossem compreendidos "com renovado amor pelo Povo de Deus" (AAS 63 [1971], 532).

É encorajador o facto de muitos leigos, quer nas paróquias quer nos agregados eclesiais, terem aprendido a valorizá-la. Contudo, ela permanece uma oração que requer uma adequada formação catequética e bíblica, para a poder apreciar profundamente.

Com esta finalidade, iniciamos hoje uma série de catequeses sobre os Salmos e sobre os Cânticos propostos na oração matutina das Laudes. Desta forma, desejo encorajar e ajudar todos a rezar com as mesmas palavras usadas por Jesus e que se encontram há milênios na oração de Israel e da Igreja.

2. Podemos introduzir-nos na compreensão dos Salmos através de vários caminhos. O primeiro consistiria em apresentar a sua estrutura literária, os seus autores, a sua formação, os contextos em que surgiram. Depois, seria sugestiva uma leitura que realçasse o seu carácter poético, que por vezes alcança níveis altíssimos de intuição lírica e de expressão simbólica. Não menos interessante seria percorrer novamente os Salmos considerando os vários sentimentos do ânimo humano que eles manifestam: alegria, reconhecimento, ação de graças, amor, ternura, entusiasmo, mas também sofrimento intenso, recriminação, pedido de ajuda e de justiça, que por vezes acabam em cólera e imprecações. Nos Salmos, o ser humano encontra-se a si próprio completamente.

A nossa leitura terá sobretudo por finalidade evidenciar o significado religioso dos Salmos, mostrando como eles, mesmo tendo sido escritos há tantos séculos por crentes hebreus, podem ser incluídos na oração dos discípulos de Cristo. Por isso, deixar-nos-emos ajudar pelos resultados da exegese, mas pôr-nos-emos juntos na escola da Tradição, sobretudo escutando os Padres da Igreja.

3. Com efeito, com profunda penetração espiritual, eles souberam discernir e indicar a grande "chave" de leitura dos Salmos no próprio Cristo, na plenitude do seu mistério. Os Padres estavam convencidos disto: nos Salmos fala-se de Cristo. De facto, Jesus ressuscitado aplicou a si próprio os Salmos quando disse aos discípulos: "era necessário que se cumprisse tudo quanto a Meu respeito está escrito em Moisés, nos Profetas e nos Salmos" (Lc 24, 44). Os Padres acrescentam que nos Salmos se fala a Cristo ou até que é Cristo quem fala. Dizendo isto, eles não pensavam apenas na pessoa individual de Jesus, mas no Christus totus, no Cristo total, formado por Cristo chefe e pelos seus membros.

Surge assim, para o cristão, a possibilidade de ler o Saltério à luz de todo o mistério de Cristo. Precisamente esta óptica faz emergir também a sua dimensão eclesial, que é realçada de maneira particular pelo cântico coral dos Salmos. Compreende-se desta forma como os Salmos tenham sido assumidos, desde os primeiros séculos, como oração pelo Povo de Deus. Se, em alguns períodos históricos, se verificou uma tendência para preferir outras orações, foi grande mérito dos monges manter alta na Igreja a chama do Saltério. Um deles, S. Romualdo de Camaldoli, no início do segundo milênio cristão, chegou a defender que como afirma o seu biógrafo Bruno de Querfurt são os Salmos o único caminho para experimentar uma oração verdadeiramente profunda: "Una via in psalmis" (Passio sanctorum Benedicti et Johannes ac sociorum eorundem: MPH VI, 1983, 427).

4. Com esta afirmação, à primeira vista exagerada, na realidade ele ancorava-se na melhor tradição dos primeiros séculos cristãos, quando o Saltério se tinha tornado o livro por excelência da oração eclesial. Esta foi à opção vencedora em relação às tendências heréticas que continuamente atacavam a unidade de fé e de comunhão. A respeito disto, é interessante a maravilhosa leitura que Santo Atanásio escreveu a Marcelino na primeira metade do século IV quando a heresia ariana alastrava atentando contra a fé na divindade de Cristo. Perante os hereges que atraíam a si o povo também com cânticos e orações que eram agradáveis aos seus sentimentos religiosos, o grande Padre da Igreja dedicou-se com todas as suas energias a ensinar o Saltério transmitido pela Escritura (cf. PG 27, 12 ss.) Foi assim que ao "Pai Nosso", a oração do Senhor por antonomásia, se acrescentou a praxe, que depressa se tornou universal entre os batizados, da oração dos Salmos.

5. Graças também à oração comunitária dos Salmos, a consciência cristã recordou e compreendeu que é impossível dirigir-se ao Pai que habita nos céus sem uma autêntica comunhão de vida com os irmãos e as irmãs que habitam na terra. Além disso, inserindo-se vitalmente na tradição orante dos hebreus, os cristãos aprenderam a rezar cantando as magnalia Dei, isto é, as grandes maravilhas realizadas por Deus quer na criação do mundo e da humanidade, quer na história de Israel e da Igreja. Esta forma de oração tirada das Escrituras, não exclui decerto expressões mais livres, e elas continuarão não só a caracterizar a oração pessoal, mas também a enriquecer a própria oração litúrgica, por exemplo com hinos e cânticos. O livro do Saltério permanece contudo a fonte ideal da oração cristã, e nele se continuará a inspirar a Igreja no novo milénio.
(28 de março de 2001)

A Liturgia das Horas, oração da Igreja

1. Antes de iniciar o comentário de cada Salmo e Cânticos de Laudes, completemos hoje a reflexão introdutória que começamos na última catequese. E fazemo-lo a partir de um aspecto muito querido à tradição espiritual: cantando os Salmos, o cristão experimenta uma espécie de sintonia entre o Espírito presente nas Escrituras e o Espírito que nele habita pela graça batismal. Mais do que rezar com palavras próprias, ele faz-se eco dos "gemidos inefáveis" de que fala São Paulo (cf. Rm 8,26), com os quais o Espírito do Senhor impele os cristãos a unirem-se à invocação característica de Jesus: "Abbá, Pai!" (Rm 8,15; Gal 4,6).

Os antigos monges estavam de tal modo seguros desta verdade, que não se preocupavam em cantar os Salmos na própria língua materna, bastando-lhes a consciência de ser, de qualquer modo, "órgãos" do Espírito Santo. Estavam convencidos de que a sua fé permitiria aos versículos dos Salmos desencadearem uma particular "energia" do Espírito Santo. A mesma convicção se manifesta na característica utilização dos Salmos, que foi chamada "oração jaculatória" da palavra latina "iaculum", isto é, dardo para indicar brevíssimas expressões salmódicas que podiam ser "lançadas", à maneira de pontas de fogo, por exemplo, contra as tentações. João Cassiano, um escritor que viveu entre o IV e o V séculos, recorda que alguns monges tinham descoberto a eficácia extraordinária do brevíssimo incipit do Salmo 69: "dignai-vos, ó Deus, salvar-me; Senhor, apressai-Vos em socorrer-me", que desde então se tornou como o pórtico de entrada na Liturgia das Horas (cf. Conlationes, 10, 10; CPL 512, 298 ss).

2. Ao lado da presença do Espírito Santo, uma outra dimensão importante é a da ação sacerdotal que Cristo desenvolve na oração em que associa a si a Igreja, sua esposa. A tal propósito, referindo-se propriamente à Liturgia das horas, o Concílio Vaticano II ensina: "Jesus Cristo, Sumo Sacerdote da nova e eterna Aliança, [...] une a si toda a humanidade e associa-a a este cântico divino de louvor. Continua este múnus sacerdotal por intermédio da sua Igreja, que louva o Senhor sem cessar e intercede pela salvação de todo o mundo, não só com a celebração da Eucaristia, mas de vários outros modos, especialmente pela recitação do Ofício divino" (Sacrosanctum Concilium, 83).

A Liturgia das Horas tem, também, o carácter de oração pública, na qual a Igreja está particularmente envolvida. É esclarecedor, então, descobrir como a Igreja definiu progressivamente este seu empenho específico de oração dividida pelas várias fases do dia. É necessário, por isso, recuar aos primeiros tempos da comunidade apostólica, quando ainda estava em vigor uma estreita ligação entre a oração cristã e a chamada "oração legal" assim prescrita pela Lei mosaica que se fazia em determinadas horas do dia no Templo de Jerusalém. Pelo livro dos Atos sabemos que os Apóstolos "como se tivessem uma só alma, frequentavam diariamente o Templo" (2, 46), e também que "subiam ao templo para a oração da nona hora" (3,1). E, por outra parte, sabemos também que as "orações legais" por excelência eram precisamente as da manhã e da tarde.

3. Pouco a pouco, os discípulos de Jesus descobriram alguns Salmos particularmente apropriados a determinados momentos do dia, da semana ou do ano, recolhendo neles um sentido profundo em relação ao mistério cristão. É uma testemunha competente deste processo São Cipriano, que assim escreve na primeira metade do século III: "É necessário, de facto, rezar desde o início do dia para celebrar na oração da manhã a ressurreição do Senhor. Isto corresponde ao que, uma vez, o Espírito Santo indicava nos Salmos com estas palavras: “atendei à voz do meu clamor, ó meu Rei e meu Deus”. A Vós é que rezo; pela manhã, Senhor, ouvis a minha voz, mal nasce o dia exponho o meu pedido e aguardo ansiosamente" (Sal 5, 3-4). [...] Quando, depois, o sol se põe e chega o fim do dia, é necessário pôr-se de novo em oração. De facto, uma vez que Cristo é o verdadeiro sol e o verdadeiro dia, no momento em que o sol e o dia do mundo chegam ao fim, pedindo através da oração que a luz volte para nós, pedimos que Cristo volte a trazer-nos a graça da luz eterna" (De oratione dominica, 35: PL,39, 655).

4. A tradição cristã não se limitou a perpetuar a hebraica, mas renovou algumas coisas que acabaram por caracterizar de modo diverso toda a experiência de oração vivida pelos discípulos de Jesus. De facto, para além de recitarem, de manhã e pela tarde, o Pai nosso, os cristãos escolheram com liberdade os Salmos para celebrar com eles a sua oração de cada dia. Ao longo da história, este processo sugeriu a utilização de determinados Salmos, particularmente significativos para alguns momentos de fé. Entre estes, tinha o primeiro lugar a oração de vigília, que preparava para o Dia do Senhor, o Domingo, em que se celebrava a Páscoa da Ressurreição.

Uma característica tipicamente cristã foi, posteriormente, o acrescentar no fim de cada Salmo e Cântico, da doxologia trinitária, "Glória ao Pai e ao Filho e ao Espírito Santo". Assim, cada Salmo e Cântico aparecem iluminados pela plenitude de Deus.

5. A oração cristã nasce, alimenta-se e desenvolve-se à volta do acontecimento da fé por excelência, o Mistério pascal de Cristo. Assim, de manhã e à tarde, ao nascer e ao pôr do sol, se recordava a Páscoa, a passagem do Senhor da morte à vida. O símbolo de Cristo "luz do mundo" aparece na lâmpada durante a oração de Vésperas, também chamada por isso lucernário. As horas do dia lembram, por sua vez, a narração da Paixão do Senhor, e a hora tércia a descida do Espírito Santo no Pentecostes. A oração da noite, por fim, tem um carácter escatológico, evocando a vigilância recomendada por Jesus na esperança da sua volta (cf. Mc 13, 35-37).

Cadenciando deste modo a sua oração, os cristãos responderam ao mandamento do Senhor de "orar incessantemente" (cf. Lc 18, 1; 21, 36; I Ts 5, 17); Ef 6, 18), mas sem esquecer que toda a vida deve, de qualquer modo, tornar-se oração. Orígenes escreve a este propósito: "Reza sem cessar aquele que une a oração às obras e as obras à oração" (Sobre a oração XII, 2; PG 11, 452 C).

Este horizonte, no seu conjunto, constitui o ambiente natural da recitação dos Salmos. Se eles são assim sentidos e vividos, a doxologia trinitária que coroa cada Salmo torna-se, para cada um dos que acreditam em Cristo, um contínuo mergulhar, sobre as ondas do Espírito e em comunhão com todo o povo de Deus, no oceano de vida e de paz em que está imerso com o Batismo, ou seja, no mistério do Pai, do Filho e do Espírito Santo.
(4 de abril de 2001)




Catequeses de São João Paulo II sobre os salmos (Espanhol)

Reflexões de Bento XVI sobre os salmos (Espanhol)

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