quinta-feira, 11 de agosto de 2016

Comentário ao Salmo 76


Salmo 76

1.Ao mestre de canto, segundo Iditum. Salmo de Asaf.
2.Minha voz se eleva para Deus e clamo. Elevo minha voz a Deus para que ele me atenda;
3.No dia de angústia procuro o Senhor. De noite minhas mãos se levantam para ele sem descanso; e, contudo, minha alma recusa toda consolação.
4.Faz-me gemer a lembrança de Deus; na minha meditação, sinto o espírito desfalecer.
5.Vós me conservais os olhos abertos, estou perturbado, falta-me a palavra.
6.Penso nos dias passados,
7.lembro-me dos anos idos. De noite reflito no fundo do coração e, meditando, indaga meu espírito:
8.Porventura Deus nos rejeitará para sempre? Não mais há de nos ser propício?
9.Estancou-se sua misericórdia para o bom? Estará sua promessa desfeita para sempre?
10.Deus se terá esquecido de ter piedade? Ou sua cólera anulou sua clemência?
11.E concluo então: O que me faz sofrer é que a destra do Altíssimo não é mais a mesma...
12.Das ações do Senhor eu me recordo, lembro-me de suas maravilhas de outrora.
13.Reflito em todas vossas obras, e em vossos prodígios eu medito.
14.Ó Deus, santo é o vosso proceder. Que deus há tão grande quanto o nosso Deus?
15.Vós sois o Deus dos prodígios, vosso poder manifestastes entre os povos.
16.Com o poder de vosso braço resgatastes vosso povo, os filhos de Jacó e de José.
17.As águas vos viram, Senhor, as águas vos viram; elas tremeram e as vagas se puseram em movimento.
18.Em torrentes de água as nuvens se tornaram, elas fizeram ouvir a sua voz, de todos os lados fuzilaram vossas flechas.
19.Na procela ribombaram os vossos trovões, os relâmpagos iluminaram o globo; abalou-se com o choque e tremeu a terra toda.
20.Vós vos abristes um caminho pelo mar, uma senda no meio das muitas águas, permanecendo invisíveis vossos passos.
21.Como um rebanho conduzistes vosso povo, pelas mãos de Moisés e de Aarão.

Deus renova os prodígios do seu amor
Queridos irmãos e irmãs,
1. A Liturgia, ao inserir nas Laudes de uma manhã o Salmo 76 que acabamos de proclamar, deseja recordar-nos que o início do dia nem sempre é luminoso. Assim como alvorecem dias tenebrosos, nos quais o céu está coberto de nuvens e ameaçado pela tempestade, assim também a nossa vida conhece dias repletos de lágrimas e de receio. Por isso, já no alvorecer a oração se torna lamento, súplica e invocação de ajuda.
O nosso Salmo é, precisamente, uma oração que se eleva para Deus com insistência, profundamente animada pela confiança, aliás, pela certeza da intervenção divina. De facto, para o Salmista o Senhor não é um imperador impassível, confinado no seu luminoso céu, indiferente às nossas vicissitudes. Desta impressão, que por vezes nos oprime o coração, surgem perguntas tão amarguradas que fazem vacilar a fé:  "Deus está a desmentir o seu amor e a sua eleição?
Esqueceu-se dos tempos em que nos amparava e nos fazia felizes?". Como veremos, estas perguntas desaparecerão devido a uma renovada confiança em Deus, redentor e salvador.
2. Sigamos, então, o desenvolvimento desta oração que começa com uma tonalidade dramática, na angústia, para depois, pouco a pouco, se abrir à serenidade e à esperança. Eis diante de nós, em primeiro lugar, a lamentação sobre o presente triste e sobre o silêncio de Deus (cf. vv. 2-11). É dirigido ao céu, aparentemente  mudo,  um  brado  que pede  ajuda,  as  mãos  elevam-se  em súplica, o coração desfalece devido às aflições. Nas noites em que não se dorme, feitas de lágrimas e de orações, "volta ao coração" um cântico, como diz o versículo 7, uma estrofe desconfortada ressoa continuamente no fundo da alma.
Quando o sofrimento chega ao ápice e se deseja afastar o cálice do sofrimento (cf. Mt 26, 39), as palavras explodem e tornam-se perguntas dilacerantes, como já se disse (cf. Sl 76, 8-11). Este brado interpela o mistério de Deus e do seu silêncio.
3. O Salmista pergunta porque é que o Senhor o recusa, porque mudou o seu rosto e o seu modo de agir, esquecendo o amor, a promessa de salvação e a ternura misericordiosa. "A direita do Altíssimo", que realizara os prodígios salvíficos do Êxodo, parece estar paralisada (cf. v. 11). E este é um verdadeiro e próprio "tormento", que faz vacilar a fé de quem reza.
Se fosse assim, Deus seria irreconhecível, tornar-se-ia um ser cruel ou uma presença como a dos ídolos, que não sabem salvar porque são incapazes, indiferentes e impotentes. Nos versículos da primeira parte do Salmo 76 encontra-se todo o drama da fé no tempo das provações e do silêncio de Deus.
4. Mas há motivos de esperança. É o que sobressai na segunda parte da súplica (cf. vv. 12-21), semelhante a um hino destinado a repropor a confirmação corajosa da própria fé também nos dias tenebrosos do sofrimento. Canta-se o passado de salvação, que teve a sua epifania de luz na criação e na libertação da escravidão do Egipto. O presente amargo é iluminado pela experiência salvífica do passado, que é uma semente lançada na história:  ela não morreu, mas simplesmente foi sepultada, para depois germinar (cf. Jo 12, 24).
Por conseguinte, o Salmista recorre a um importante conceito bíblico, o do "memorial", que não é apenas uma vaga recordação confortadora, mas é a certeza de uma acção divina que nunca virá a faltar:  "Tenho na memória as gestas do Senhor, lembro-me das Suas maravilhas" (Sl 76, 12).
Professar a fé nas obras de salvação do passado faz ter fé em tudo o que o Senhor é constantemente e, portanto, também no tempo presente. "Ó Deus, santos são os Vossos caminhos... Vós sois o Deus que opera prodígios" (vv. 14-15). Assim o presente, que parecia não ter futuro nem luz, é iluminado pela fé em Deus e aberto à esperança.
5. A fim de apoiar esta fé o Salmista provavelmente cita um hino mais antigo, talvez cantado na liturgia do templo de Sião (cf. vv. 17-20). É uma clamorosa teofania na qual o Senhor entra na história, agitando a natureza e sobretudo as águas, símbolo da confusão, do mal e do sofrimento. É muito bonita a imagem do caminho de Deus sobre as águas, sinal do seu triunfo sobre as forças negativas:  "Sobre o mar foi o Vosso caminho, e a Vossa senda, no meio de águas caudalosas, sem que se conhecesse o Vosso caminho" (v. 20). E o pensamento dirige-se para Cristo que caminha sobre as águas, símbolo eloquente da sua vitória sobre o mal (cf. Jo 6, 16-20).
Por fim, recordamos que Deus guiou o seu povo, "como um rebanho", "pela mão de Moisés e de Aarão" (Sl 76, 21), o Salmo leva-nos implicitamente a uma certeza:  Deus conduzir-nos-á de novo à salvação. A sua mão poderosa e invisível estará connosco através da mão visível dos pastores e dos guias por Ele estabelecidos. O Salmo, que começou com um brado de sofrimento, no final suscita sentimentos de fé e de esperança no grande pastor das nossas almas (cf. Heb 13, 21; 1 Pd 2, 25).

JOÃO PAULO II 
  AUDIÊNCIA GERAL  
Quarta-feira, 13 de Março de 2002










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