Salmo 50
Miserere
1.Ao mestre de canto. Salmo de Davi,
2.quando o profeta Natã foi encontrá-lo, após o pecado com Betsabé.
3.Tende piedade de mim, Senhor, segundo a vossa bondade. E conforme a imensidade de vossa misericórdia, apagai a minha iniqüidade.
4.Lavai-me totalmente de minha falta, e purificai-me de meu pecado.
5.Eu reconheço a minha iniqüidade, diante de mim está sempre o meu pecado.
6.Só contra vós pequei, o que é mau fiz diante de vós. Vossa sentença assim se manifesta justa, e reto o vosso julgamento.
7.Eis que nasci na culpa, minha mãe concebeu-me no pecado.
8.Não obstante, amais a sinceridade de coração. Infundi-me, pois, a sabedoria no mais íntimo de mim.
9.Aspergi-me com um ramo de hissope e ficarei puro. Lavai-me e me tornarei mais branco do que a neve.
10.Fazei-me ouvir uma palavra de gozo e de alegria, para que exultem os ossos que triturastes.
11.Dos meus pecados desviai os olhos, e minhas culpas todas apagai.
12.Ó meu Deus, criai em mim um coração puro, e renovai-me o espírito de firmeza.
13.De vossa face não me rejeiteis, e nem me priveis de vosso santo Espírito.
14.Restituí-me a alegria da salvação, e sustentai-me com uma vontade generosa.
15.Então aos maus ensinarei vossos caminhos, e voltarão a vós os pecadores.
16.Deus, ó Deus, meu salvador, livrai-me da pena desse sangue derramado, e a vossa misericórdia a minha língua exaltará.
17.Senhor, abri meus lábios, a fim de que minha boca anuncie vossos louvores.
18.Vós não vos aplacais com sacrifícios rituais; e se eu vos ofertasse um sacrifício, não o aceitaríeis.
19.Meu sacrifício, ó Senhor, é um espírito contrito, um coração arrependido e humilhado, ó Deus, que não haveis de desprezar.
20.Senhor, pela vossa bondade, tratai Sião com benevolência, reconstruí os muros de Jerusalém.
21.Então aceitareis os sacrifícios prescritos, as oferendas e os holocaustos; e sobre vosso altar vítimas vos serão oferecidas.
Meditação de São João Paulo II sobre o Salmo 50
Senhor, tende piedade de mim
1. Escutamos o Miserere, uma
das orações mais célebres do Saltério, o Salmo penitencial mais intenso e
repetido, o cântico do pecado e do perdão, a meditação mais profunda sobre a
culpa e a graça. A Liturgia das Horas faz-nos repeti-lo nas Laudes de cada
sexta-feira. Desde há muitos séculos numerosos corações de fiéis judeus e
cristãos elevam aos céus como que um suspiro de arrependimento e de esperança
dirigido a Deus misericordioso.
A tradição judaica colocou o
Salmo nos lábios de David, convidado pelas palavras severas do profeta Natan a
fazer penitência (cf. vv. 1-2; 2 Sam 11, 12), o qual lhe reprovava o adultério
cometido com Betsabé e o homicídio de seu marido, Urias. Mas o Salmo
enriquece-se nos séculos seguintes, com a oração de muitos outros pregadores,
que retomam os temas do "coração novo" e do "Espírito" de
Deus infundido no homem redimido, segundo o ensinamento dos profetas Jeremias e
Ezequiel (cf. v. 12; Jr 31, 31-34; Ez 11, 19; 36, 24-28).
2. São dois os horizontes que o
Salmo 50 delineia. Em primeiro lugar, está a região tenebrosa do pecado (cf.
vv. 3-11), na qual se encontra o homem desde o início da sua existência:
"Eis que eu nasci na culpa, e a minha mãe concebeu-me no pecado" (v.
7). Mesmo se esta declaração não pode ser assumida como uma formulação
explícita da doutrina do pecado original como foi delineada pela teologia
cristã, não há dúvida de que ela lhe corresponde: de facto, exprime a dimensão
profunda da inata debilidade moral do homem. O Salmo, nesta primeira fase,
apresenta-se como uma análise do pecado, feita diante de Deus. São três as
palavras hebraicas usadas para definir esta triste realidade, que provém da
liberdade humana mal empregue.
3. A primeira palavra, hattá,
significa literalmente "não atingir o alvo": o pecado é uma aberração
que nos afasta de Deus, meta fundamental das nossas relações, e por conseguinte
também do próximo.
A segunda palavra hebraica é
"awôn, que remete para a imagem de "torcer", "curvar".
Por conseguinte, o pecado é um desvio sinuoso do caminho ricto; é a inversão, a
deturpação, a deformação do bem e do mal, no sentido declarado por Isaías:
"Ai dos que ao mal chamam bem, e ao bem, mal, que têm as trevas por luz e
a luz por trevas" (Is 5, 20). Precisamente por este motivo, na Bíblia, a
conversão é indicada como um "voltar" (em hebraico shûb) ao caminho ricto,
corrigindo o percurso.
A terceira palavra que o
salmista usa para falar do pecado é peshá. Ela exprime a rebelião do súbdito em
relação ao soberano e, por conseguinte, é um desafio aberto dirigido a Deus e
ao seu projeto para a história humana.
4. Mas se o homem confessa o
seu pecado, a justiça salvífica de Deus está pronta para o purificar
radicalmente. Desta forma passa-se para a segunda parte espiritual do Salmo, a
luminosa da graça (cf. vv. 12-19). De facto, através da confissão das culpas
abre-se para quem reza um horizonte de luz no qual Deus acua. O Senhor não age
apenas negativamente, eliminando o pecado, mas regenera a humanidade pecadora
através do seu Espírito vivificante: infunde no homem um "coração"
novo e puro, ou seja, um conhecimento renovado, e abre-lhe a possibilidade de
uma fé límpida e de um culto agradável a Deus.
Orígenes fala a este propósito
de uma terapia divina, que o Senhor realiza através da sua palavra e mediante a
obra regeneradora de Cristo: "Assim como Deus predispôs para o corpo o
remédio das ervas terapêuticas misturadas com sabedoria, assim também preparou
remédios para a alma com as palavras que infundiu, distribuindo-as nas divinas
Escrituras... Deus também deu outra atividade médica, cujo arquiatra é o
Salvador, o qual diz de si mesmo: "não são os sadios que precisam do
médico, mas os doentes". Ele era o médico por excelência capaz de curar
qualquer debilidade, qualquer enfermidade" (Homilias sobre os Salmos,
Florença, 1991, pp. 247-249).
5. A riqueza do Salmo 50
mereceria uma exegese cuidadosa de cada uma das suas partes. É o que faremos
quando ele voltar a ressoar nas várias sextas-feiras das Laudes. O olhar de
conjunto, que agora dirigimos a esta grande súplica bíblica, já nos revela
algumas componentes fundamentais de uma espiritualidade que deve refletir-se na
existência quotidiana dos fiéis. Em primeiro lugar, há um profundo sentido do
pecado, entendido como uma escolha livre, conotada negativamente a nível moral
e teologal: "Contra Vós apenas é que eu pequei, pratiquei o mal perante os
Vossos olhos" (v. 6). Depois, verifica-se também no Salmo um profundo
sentido da possibilidade de conversão: o pecador, sinceramente arrependido (cf.
v. 5), apresenta-se em toda a sua miséria e despojamento a Deus, suplicando-lhe
que não o afaste da sua presença (cf. v. 13).
Por fim, no Miserere, vê-se uma
radicada convicção do perdão divino que "apaga, lava e purifica" o
pecador (cf. vv. 3-4) e chega até a transformá-lo numa criatura nova que tem
espírito, língua, lábios e coração transformados (cf. vv. 14-19). "Mesmo
se os nossos pecados afirmava santa Faustina Kowalska fossem escuros como a
noite, a misericórdia divina é mais forte do que a nossa miséria. É necessária
uma só coisa: que o pecador abra pelo menos um pouco da porta do seu coração...
o resto fá-lo-á Deus... Tudo se iniciou com a tua misericórdia e tudo terminará
com a tua misericórdia" (M. Winowska, O ícone do Amor misericordioso. A
mensagem da Irmã Faustina, Roma, 1981, pág. 271).
(24 de outubro de 2001)
Salmo 50
Senhor, tende piedade de mim!
1. Cada semana da Liturgia das
Laudes é marcada na sexta-feira pelo Salmo 50, o Miserere, o Salmo penitencial
mais amado, cantado e meditado, hino ao Deus misericordioso elevado pelo
pecador arrependido. Já tivemos ocasião, numa catequese precedente, de
apresentar o quadro geral desta grande oração. Em primeiro lugar, entra-se na
região tenebrosa do pecado para aí levar a luz do arrependimento humano e do
perdão divino (cf. vv. 3-11). Depois, exalta-se o dom da graça divina, que
transforma e renova o espírito e o coração do pecador arrependido: esta é uma
região luminosa, cheia de esperança e de confiança (cf. vv. 12-21).
Detemo-nos, nesta nossa
reflexão, nalgumas considerações, na primeira parte do Salmo 50, aprofundando
alguns dos seus aspectos. Mas, no começo, desejaríamos mencionar a maravilhosa
proclamação divina do Sinai, que é quase o retrato do Deus cantado pelo
Miserere: "Javé! Javé! Deus misericordioso e clemente, vagaroso em
encolerizar-Se, cheio de bondade e fidelidade, que mantém a Sua graça até à
milésima geração, que perdoa a iniquidade, a rebeldia e o pecado" (Êx 34,
6-7).
2. A invocação inicial eleva-se
a Deus para obter o dom da purificação que faça como dizia o profeta Isaías
"brancos como a neve" e "como a lã" os pecados, em si
semelhantes ao "escarlate" e "vermelhos como a púrpura"
(cf. Is 1,18). O Salmista confessa o seu pecado de forma clara e sem
hesitações: "Reconheço, de verdade, a minha culpa... Contra Vós apenas é
que eu pequei, pratiquei o mal perante os vossos olhos" (Sl 50, 5-6).
Por conseguinte entra em cena a
consciência pessoal do pecador que se abre para compreender claramente o seu
mal. É uma experiência que envolve liberdade e responsabilidade, e leva a
admitir que se quebrou o vínculo para construir uma escolha de vida alternativa
em relação à Palavra divina. Disto deriva uma decisão radical de mudança. Tudo
isto está encerrado naquele "reconhecer", um verbo que em hebraico
não significa apenas uma adesão intelectual mas uma opção vital.
É o que, infelizmente, muitos
não fazem, como nos adverte Orígenes: "Há quem, depois de ter pecado, se
sinta completamente tranquilo e não se preocupe com o seu pecado nem tocado
pela consciência do mal cometido, mas viva como se nada tivesse acontecido. Sem
dúvida, esse não poderia dizer: tenho sempre consciência do meu pecado. Ao
contrário, quando, depois do pecado, o pecador se inquieta e se aflige devido
ao seu pecado, quando se sente atormentado pelos remorsos, dilacerado sem
tréguas e sofre sobressaltos no seu íntimo que se eleva para o contestar, ele,
com razão, exclama: não há paz para os meus ossos face ao aspecto dos meus
pecados... Portanto, quando os pecados cometidos se apresentam aos olhos do
nosso coração, os revemos um por um, os reconhecemos, nos envergonhamos e arrependemos
do que fizemos, então perturbados e aterrorizados, justamente dizemos que não
há paz para os nossos ossos face ao aspecto dos nossos pecados..."
(Homilias sobre os Salmos, Florença 1991, págs. 277-279).
O reconhecimento e a
consciência do pecado é, portanto, fruto de uma sensibilidade adquirida graças
à luz da Palavra de Deus.
3. Na confissão do Miserere há
um realce de particular evidência: o pecado não é compreendido apenas na sua
dimensão pessoal e "psicológica", mas é analisado sobretudo na sua
qualidade teológica. "Contra Vós apenas é que eu pequei" (Sl 50, 6),
exclama o pecador, ao qual a tradição deu o rosto de David, consciente do seu
adultério com Betsabé, e da denúncia do profeta Natan contra este crime e
contra o crime da morte do seu marido, Urias (cf v. 2; 2 Sam 11, 12).
Por conseguinte, o pecado não é
apenas uma questão psicológica ou social, mas é um acontecimento que prejudica
a relação com Deus, violando a sua lei, recusando o seu projeto na história,
alterando a escala dos valores, "mudando as trevas em luz e a luz em
trevas", isto é, "chamando bem ao mal e mal ao bem" (cf. Is 5,
20). Antes de ser uma possível afronta contra o homem, o pecado é antes de mais
traição a Deus. São emblemáticas as palavras que o filho desprovido de bens
pronuncia diante de seu pai, pródigo de amor: "Pai, pequei contra o Céu
isto é, contra Deus e contra ti!" (Lc 15, 21).
4. A este ponto o Salmista
introduz outro aspecto, mais diretamente relacionado com a realidade humana.
Foi a frase que suscitou muitas interpretações e que também foi relacionada com
a doutrina do pecado original: "Eis que eu nasci na culpa, e a minha mãe
concebeu-me pecador" (Sl 50, 7). O orante deseja indicar a presença do mal
dentro do nosso ser, como é evidente na menção da concepção e do nascimento,
uma forma de exprimir toda a existência partindo da sua origem. Mas o Salmista
não relaciona formalmente esta situação com o pecado de Adão e Eva, isto é, não
fala explicitamente de pecado original.
Contudo, é evidente que,
segundo o texto do Salmo, o mal se esconde nas próprias profundezas do homem, é
inerente à sua realidade histórica e, por isso, é decisivo o pedido da
intervenção da graça divina. O poder do amor de Deus supera o poder do pecado,
o rio transbordante do mal pode menos do que a água fecundante do perdão:
"Onde abunda o pecado, superabunda a graça" (Rm 5, 20).
5. Por este caminho, a teologia
do pecado original e toda a visão bíblica do homem pecador são indiretamente
recordados com palavras que deixam, ao mesmo tempo, entrever a luz da graça e
da salvação.
Como teremos ocasião de
descobrir no futuro, voltando a falar deste Salmo e dos versículos seguintes, a
confissão da culpa e a consciência da própria miséria não levam ao terror ou ao
pesadelo do juízo, mas à esperança da purificação, da libertação, da nova
criação.
De facto, Deus salva-nos
"não por causa das obras da justiça que tivéssemos feito, mas por
misericórdia, mediante o baptismo de regeneração e renovação do Espírito Santo,
que derramou sobre nós abundantemente por Jesus Cristo, nosso Salvador" (Tit
3, 5-6).
(8 de maio de 2002)
Salmo 50
Tende piedade de mim, ó Senhor!
1. Em cada semana a Liturgia
das Laudes propõe de novo o Salmo 50, o célebre Miserere. Já o meditamos outras
vezes nalgumas das suas partes. Também agora nos detemos de modo particular
numa parte deste grandioso pedido de perdão: os versículos 12-16.
Antes de mais, é significativo
notar que, no original hebraico, ressoa três vezes a palavra
"espírito", pedido a Deus como dom e acolhido pela criatura
arrependida do seu pecado: "Renovai ao meu interior um espírito reto...
nem me priveis do Vosso santo espírito... sustentai-me com um espírito generoso"
(vv. 12.13.14). Quase se poderia falar recorrendo a um termo litúrgico de uma
"epiclese", ou seja, de uma tríplice invocação do Espírito que, como
na criação se libertava sobre as águas (cf. Gn 1, 2), agora penetra na alma do
fiel infundindo nova vida e elevando-o do reino do pecado para o céu da graça.
2. Os Padres da Igreja, no
"espírito" invocado pelo Salmista, veem a presença eficaz do Espírito
Santo. Assim, Santo Ambrósio está convencido de que se trata do único Espírito
Santo "que fermentava com fervor nos profetas, foi dado [por Cristo] aos
apóstolos e foi unido ao Pai e ao Filho no sacramento do baptismo" (O
Espírito Santo, I, 4, 55: SAEMO 16, pág. 95). A mesma convicção é expressa por
outros Padres como Dídimo, o Cego, de Alexandria do Egito, e Basílio de
Cesareia, nos respectivos tratados sobre o Espírito Santo (Dídimo o Cego, O
Espírito Santo, Roma 1990, pág. 59; Basílio de Cesareia, O Espírito Santo, IX,
22, Roma 1993, pág. 117 s.).
E ainda Santo Ambrósio,
observando que o Salmista fala da alegria da qual a alma está invadida quando
recebe o Espírito generoso e poderoso de Deus, comenta: "A alegria e a
felicidade são frutos do Espírito e o Espírito Soberano é aquilo sobre o que
nós, principalmente, nos baseamos. Portanto, quem é fortalecido com o Espírito
soberano não é submetido pela escravidão, não sabe ser escravo do pecado, não
hesita, não vagueia aqui e acolá, não é incerto nas escolhas mas, alicerçado na
rocha, está firme em pés que não vacilam" (Apologia do Profeta David a
Teodísio Augusto, 15, 72: SAEMO 5, pág. 129).
3. Com esta tríplice menção do
"espírito", o Salmo 50, depois de ter descrito nos versículos
precedentes a prisão obscura da culpa, abre-se sobre a razão luminosa da graça.
É uma grande mudança, comparável a uma nova criação: como nas origens Deus
tinha insuflado o seu espírito na matéria e dera origem à pessoa humana (cf. Gn
2, 7), assim agora o mesmo Espírito divino regenera (cf. Sl 50, 12), renova,
transfigura e transforma o pecador arrependido, abraça-o de novo (cf. v. 13) e
o faz participante da alegria da salvação (cf. v. 14). Agora o homem, animado
pelo Espírito divino, encaminha-se pelas estradas da justiça e do amor, como se
diz noutro Salmo: "Ensinai-me a cumprir a Vossa vontade, porque sois o meu
Deus. Seja guiado pelo Vosso Espírito bondoso em terra plana" (Sl 142,
10).
4. Tendo experimentado este
renascimento o orante transforma-se em testemunha; promete a Deus que ensinará
"aos ímpios os Seus caminhos" do bem (Sl 50, 15), de maneira que eles
possam, como o filho pródigo, voltar à casa do Pai. Do mesmo modo, Santo
Agostinho, depois de ter percorrido os caminhos tenebrosos do pecado, tinha
depois sentido a necessidade nas suas Confissões de confirmar a liberdade e a
alegria da salvação.
Quem conheceu o amor
misericordioso de Deus torna-se uma sua testemunha fervorosa, sobretudo em
relação a quantos ainda estão aprisionados nas redes do pecado. Pensamos na
figura de Paulo que, iluminado por Cristo no caminho de Damasco, se torna um
incansável missionário da graça divina.
5. Pela última vez o orante
olha para o seu passado obscuro e brada a Deus: "Livrai-me, Senhor, das ações
sanguinárias, Deus da minha salvação" (v. 16). O "sangue", ao
qual ele se refere, é interpretado na Escritura de vários modos. A alusão,
posta nos lábios do rei David, refere-se à morte de Urias, o marido de Betsabé,
a mulher que tinha sido objeto da paixão do soberano. Em sentido mais geral, a
invocação indica o desejo de purificação do mal, da violência, e do ódio,
sempre presentes no coração humano com força tenebrosa e maléfica. Mas agora,
os lábios do fiel, purificados do pecado, cantam ao Senhor.
E o trecho do Salmo 50, que
hoje comentámos, termina precisamente com o empenho de proclamar a
"justiça" de Deus. A palavra "justiça" aqui, como muitas
vezes na linguagem bíblica, não designa propriamente a ação punitiva de Deus em
relação ao mal, mas antes indica a reabilitação do pecador, porque Deus
manifesta a sua justiça ao fazer dos pecadores homens justos (cf. Rm 3, 26).
Deus não sente prazer pela morte do mau, mas deseja que desista do seu modo de
se comportar e de viver (cf. Ez 18, 23).
(4 de dezembro de 2002)
Salmo 50
Tende piedade de mim, Senhor
1. É a quarta vez que ouvimos,
durante estas nossas reflexões sobre a Liturgia das Laudes, a proclamação do
Salmo 50, o célebre Miserere. De facto, ele é proposto de novo na sexta-feira
de cada semana, para que se torne um oásis de meditação, onde descobrir o mal
que se esconde na consciência e invocar do Senhor a purificação e o perdão. Com
efeito, como confessa o Salmista noutra súplica, "nenhum vivente é justo
na Vossa presença", ó Senhor (Sl 142, 2). No Livro de Job lê-se:
"Como, pois, pode justificar-se o homem diante de Deus? Como será puro o
homem nascido da mulher? Até a própria luz não brilha e as estrelas não são
puras aos Seus olhos! Quanto menos o homem, simples verme, e o filho do homem, mero
vermezinho!" (25, 4-6).
Estas são frases fortes e
dramáticas, que querem mostrar em toda a seriedade e gravidade o limite e a
fragilidade da criatura humana, a sua capacidade perversa de semear o mal e a
violência, a impureza e a mentira. Contudo, a mensagem de esperança do
Miserere, que o Saltério coloca nos lábios de David, pecador convertido, é
esta: Deus pode "apagar, lavar, purificar" a culpa confessada com o
coração contrito (cf. Sl 50, 2-3). Diz o Senhor através da voz de Isaías:
"Mesmo que os vossos pecados fossem como escarlate, tornar-se-iam brancos
como a neve" (1, 18).
2. Deter-nos-emos desta vez
brevemente no fim do Salmo 50, um fim cheio de esperança porque o orante é
consciente de ter sido perdoado por Deus (cf. vv. 17-21). Agora, os seus lábios
preparam-se para proclamar ao mundo o louvor ao Senhor, confirmando desta forma
a alegria que experimenta a alma purificada do mal e, por isso, libertada dos
remorsos (cf. v. 17).
O orante testemunha de modo
claro outra convicção, relacionando-se com o ensinamento reiterado pelos
profetas (cf. Is 1, 10-17; Am 5, 21-25; Os 6, 6): o sacrifício mais agradável
que se eleva ao Senhor como perfume e fragrância agradável (cf. Gn 8, 21) não é
o holocausto de touros ou de cordeiros mas, antes, o "coração quebrantado
e humilhado" (Sl 50, 19).
A Imitação de Cristo, texto tão
querido à tradição espiritual cristã, repete a mesma admoestação do Salmista:
"A humilde contrição dos pecados é um sacrifício que te é agradável, um
perfume muito mais suave do que o fumo do incenso... Ali purifica-se e lava-se
qualquer iniquidade" (III, 52, 4).
3. O Salmo conclui-se de
maneira inesperada, com uma perspectiva completamente diferente, que até parece
contraditória (cf. vv. 20-21). Da última súplica de um só pecador passa-se a
uma oração pela reconstrução de toda a cidade de Jerusalém, o que nos leva da
época de David à da destruição da cidade, alguns séculos mais tarde. Por outro
lado, depois de ter expresso no v. 18 a recusa divina das imolações de animais,
o Salmo anuncia no v. 21 que estas mesmas imolações serão agradáveis a Deus.
É evidente que esta passagem
final é um acréscimo posterior, feito no tempo do exílio, que quer, num certo
sentido, corrigir ou pelo menos completar a perspectiva do Salmo de David. E isto,
sob dois aspectos: por um lado, não se quis que todo o Salmo se limitasse a uma
oração individual; era necessário pensar também na situação piedosa de toda a
cidade. Por outro lado, quis-se reduzir a recusa divina dos sacrifícios
rituais; esta recusa não podia ser completa nem definitiva, porque se tratava
de um culto prescrito pelo próprio Deus na Tora. Quem completou o Salmo teve
uma intuição valida: compreendeu a necessidade em que se encontravam os
pecadores, a necessidade de uma mediação sacrifical. Os pecadores não são
capazes de se purificarem sozinhos; não bastam bons sentimentos. É preciso uma mediação
externa eficaz. O Novo Testamento revelará o sentido pleno desta intuição,
mostrando que, com a oferta da sua vida, Cristo realizou uma mediação
sacrifical perfeita.
4. Nas suas Homilias sobre
Ezequiel, São Gregório Magno compreendeu bem a diferença de perspectiva que
existe entre os vv. 19 e 21 do Miserere. Ele propõe uma interpretação da mesma,
que podemos acolher também, concluindo assim a nossa reflexão. São Gregório
aplica o v. 19, que fala de espírito contrito, à existência terrena da Igreja e
o v. 21, que fala de holocausto, à Igreja no céu.
Eis as palavras daquele grande
Pontífice: "A santa Igreja tem duas vidas: uma que conduz no tempo, outra
que recebe eternamente; uma com a qual fadiga na terra, outra que é
recompensada no céu; uma com a qual reúne os méritos, outra que já goza dos
méritos recolhidos. E tanto numa como noutra vida oferece o sacrifício: aqui o
sacrifício da contrição e lá no céu o sacrifício do louvor. Está escrito acerca
do primeiro sacrifício: "O meu sacrifício, Senhor, será o meu espírito
contrito" (Sl 50, 19); acerca do segundo está escrito: "Então
agradecereis as ofertas puras, sacrifícios e holocaustos" (Sl 50, 21)...
Os dois oferecem a carne, porque aqui a oblação da carne é a mortificação do
corpo, no céu a oblação da carne é a glória da ressurreição no louvor a Deus.
No céu oferecer-se-á a carne
como que em holocausto quando, transformada na incorruptibilidade eterna, não
haverá mais conflito algum e nada será mortal, porque perdurará totalmente
acesa de amor por ele, no louvor sem fim" (Homilias sobre Ezequiel/2, Roma
1993, pág. 271).
(30 de julho de 2003)
Diretório Franciscano - Salmo 50 (Espanhol)
Sermão de Santo Agostinho sobre o Salmo 50 (Miserere)
1 - Não nos podemos furtar a tão numerosa multidão, mas também não devemos onerar sua fraqueza. Pedimos silêncio e tranquilidade, para que nossa voz, depois do esforço de ontem, encontre forças para ir até o fim. Acredito que V. Caridade hoje compareceu em maior número apenas no intuito de rezar pelos que se ausentam devido a sentimentos alheios e maus. Pois, não falamos de pagãos, nem de judeus, mas de cristãos; nem se trata de catecúmenos, mas de muitos já batizados, de quem não vos diferenciais pelo batismo, mas pelo coração. Pensamos em quantos são hoje nossos irmãos, e contudo lastimamos que procurem vaidades e loucas mentiras, negligenciando sua vocação! Se, por acaso, no circo eles se horrorizam por alguma coisa, logo fazem o sinal da cruz, mas permanecem de pé, trazendo-o na fronte, num lugar de onde deviam se afastar se o trouxessem no coração. Seria mister suplicar a misericórdia de Deus que lhes desse entendimento para condenar estas coisas, sentimento para delas fugir, e misericórdia para perdoar. Oportunamente o salmo que hoje foi cantado é penitencial. Dirigimo-nos também aos ausentes. Vossa memória fara junto deles o papel de nossa voz. Não negligenciais os feridos e debilitados, mas para mais facilmente curá-los, deveis manter-vos com saúde. Corrigi arguindo, cosolai discorrendo, oferecei um exemplo vivendo honestamente. Assista-os quem vos assistiu. Pelo fato de que já atravessastes estes perigos, não foi cortada a ponte da misericórdia de Deus. Eles chegarão ao ponto a que chegastes, e passarão por onde passastes. Certamente é molesto, sumamente perigoso, ou antes, pernicioso, sem dúvida mortal, pecar conscientemente. Uma coisa é alguém que despreza a voz de Cristo correr para estas vaidades, e outra alguém não saber o que deve evitar. Mas o presente salmo mostra que nem destes se deve desesperar.
2 - Este é o teor do título: "Salmo de Davi. Quando veio ter com ele o profeta Natan, depois que se unira com Bersabéia". Era mulher casada. Devemos falar com dor e tremor; todavia, Deus não quis se calasse o que fez ser escrito. Direi, portanto, não exortando à imitação, mas instruindo para incutir temor. O rei e profeta Davi, a cuja estirpe, segundo a carne, pertenceria o Senhor, seduzido pela beleza dessa mulher, desposada a outro, com ela cometeu adultério. Este salmo não o narra, mas alude a isto o título. No livro dos Reis, porém, conta-se tudo por extenso. Ambas as Escrituras são canônicas, ambas sem dúvida alguma devem ser utilizadas pelos fiéis. O pecado foi cometido e isso está escrito. Davi mandou matar o marido de Bersabéia na guerra. Acrescentou um homicídio ao adultério. Depois de cometer este pecado foi-lhe enviado o profeta Natan, da parte de Deus, que o arguiu de tão grande crime.
3 - Declaramos o que devem os homens evitar. Ouçamos a quem hão de imitar se tiverem caído. Muitos querem cais com Davi, mas não querem se levantar com ele. Não é exemplo de queda que te é proposto, e sim de como te reerguer se tiveres caído. Cuidado para não cair. A queda dos grandes não deve dar prazer aos menores, mas sirva a sua queda para incutir temos aos que estão abaixo. Foi para isto que foi proposto, que foi escrito, para isto na Igreja frequentemente é lido e cantado. Escutem os que não caíram, a fim de evitar a queda, ouçam os que caíram para se levantarem. Não se calou o pecado de tão grande varão. É anunciado na igreja. Os maus ouvintes escutam e procuram nisso uma defesa de seus pecados. Prestam atenção no modo de defender o pecado que decidiram cometer, ao invés de se precaverem do que não cometeram, e dizem a si mesmos: Se Davi assim agiu, por que não posso também eu? Por esta razão, a alma se torna pior do que Davi, querendo agir assim visto que Davi o fez; seu pecado é pior do que o de Davi. Vou explicar melhor, se puder. Davi não tomara a outro por exemplo, como tu. Caíra por ceder à concupiscência, e não por pretexto de não ser pecado, porque ele é santo, mas a fim de pecares. Não imitas a sua santidade, mas imitas sua queda. Amas em Davi o que ele mesmo odiou em si. Preparas-te para pecar, decides pecar. Examinas o Livro de Deus para pecar. ouves as Sagradas Escrituras a fim de praticar aquilo que desagrada a Deus. Não foi assim que agiu Davi. Foi repreendido pelo profeta, mas não caiu como profeta. Alguns, contudo, escutam de modo salutar, e vendo a queda de um forte medem melhor a sua fraqueza; desejosos de evitar o que Deus condena, com segurança moderam seus olhares. Não fixam os olhos na beleza carnal, imaginando por perversa simplicidade que estão firmes. Não dizem: Olhei com boa intenção, olhei por amizade, com benevolência olhei longamente. Pensam na queda de Davi. Reconhecendo que são pequenos não querem ver o que pode fazê-los cair, por vêem que o grande caiu. Reprimem os olhos da insolência, não se reúnem facilmente com as mulheres dos outros, não se detém no meio delas, não dirigem os olhos para as sacadas e terraços vizinhos. Pois, Davi viu de longe aquele que o prendeu. A mulher estava longe, mas a concupiscência estava perto. Fora dele estava o que ele via, mas dentro de si tinha o que o faria cair. Faz-se mister precaver-se desta fraqueza da carne, recordando-se do que disse o Apóstolo: "O pecado não impere mais em vosso corpo mortal" (Rm 6,12). Não disse: Não exista, mas: "não impere". O pecado está aí, quando sentes; mas só impera se consentires. Há de ser refreada e não seguida a deleitação carnal, principalmente quando se estender a objetos ilícitos e alheios. Deve ser domada pela vontade, e não se tornar voluntária. Olha sem receio, se não atinge teus sentimentos. Mas, podes replicar: Fico firme. Acaso és mais forte do que Davi?
4 - Tal exemplo serve de aviso, para que ninguém se orgulhe na prosperidade. Muitos receiam a adversidade, mas não temem a prosperidade. No entanto, a prosperidade é mais perigosa para a alma do que a adversidade para o corpo. A prosperidade primeiro corrompe a alma e depois a adversidade a encontra num estado de fragilidade. Meus irmãos, vigiai atentamente contra a felicidade. Por isso, vede como a palavra de Deus nos previne contra a segurança em nossa felicidade: "Servi ao Senhor com temor e exultai diante dele com temor" (Sl 2,11). Com exultação, demos graças; com temor de cair. Davi não pecou enquanto sofria a perseguição de Saul. Quando o santo profeta Davi sofria a inimizade de Saul, quando estava angustiado por suas perseguições, quando fugia por diversas regiões para não cair nas mãos do rei, não desejou a mulher do próximo, nem matou o marido depois de ter cometido adultério com a mulher (1Rs 24,5; 26,9). Na fraqueza de sua tribulação estava tanto mais atento ao que Deus manda quanto mais infeliz se via. Determinadas tribulações são úteis. É útil a ferramenta do médico. Muito mais do que a tentação do diabo. Davi se tornou seguro de si depois de vencer os inimigos; a angústia passou e o orgulho cresceu. Valha-nos, pois, este exemplo para termos receio da felicidade. Diz o salmista: "Encontrei a tribulação e a dor e invoquei o nome do Senhor" (Sl 114,3.4).
5 - Mas isto sucedeu. Diria tais coisas aos que não cometeram tal pecado para que guardem vigilantes sua integridade e vendo a queda de um grande, os pequenos sintam medo. Todavia, se alguém houver caído e ouve estas coisas, tendo na consciência uma culpa, preste atenção às palavras deste salmo: verifique o tamanho da ferida, mas não perca a esperança no poder do médico. Cair no desespero por causa do pecado é morte certa. Por conseguinte, ninguém diga: Se cometi algum mal já estou condenado. Deus não perdoa esta espécie de pecados; porque não continuarei a pecar? Gozarei com delícia neste mundo, com lascívia, com desejos impuros; tendo já perdido a esperança de conversão, tenha ao menos o que vejo, uma vez que não poderei ter o que creio. Esta salmo, no entanto, como previne os que não caíram, igualmente não quer que desesperem os que pecaram. Quem quer que sejas que pecaste, e hesitas em fazer a penitência por teu pecado, desanimado relativamente a tua salvação, escuta Davi a gemer. Não te foi enviado o profeta Natan, mas o próprio Davi. Escuta-o a clamar, e clama com ele; escuta-o a gemer simultaneamente; escuta-o a chorar, e une as tuas lágrimas às dele; escuta-o emendado, e alegra-te com ele. Se não impediste o pecado, não se encerre para ti a esperança do perdão. A Davi foi enviado o profeta Natan. Observa a humildade do rei. Não repeliu as palavras de ordem; não repelei: Como ousas falar assim ao rei, que sou? Rei sublime, que ouviu a profeta, o povo humilde ouça a Cristo.
6 - Escuta, portanto, estas palavras, e repete com ele: "Piedade de mim, ó Deus, segundo a tua grande misericórdia". Quem suplica grande misericórdia confessa sua enorme miséria. Procurem menor misericórdia os que pecaram por ignorância. "Piedade de mim, ó Deus, segundo a tua grande misericórdia". Socorre ao gravemente ferido, com teus enérgicos medicamentos. Grave é minha doença, mas refugio-me no Onipotente. Perderia a esperança por causa de meu ferimento mortal se não encontrasse tão grande médico. "Piedade de mim, ó Deus, segundo a tua grande misericórdia; e com a abundância de tuas comiserações apaga a minha iniquidade. A paga a minha iniquidade" corresponde a "Piedade de mim, ó Deus". E "a abundância de tuas comiserações" equivale a "segundo a tua grande misericórdia"; e desta grande misericórdia derivam as muitas comiserações. Olhas os que desprezam para corrigi-los, voltas-te para os ignorantes para ensinar-lhes, atendes os pecadores para perdoá-los. Cometeu pecados por ignorância? Alguém os cometera, praticando muitos males: "Mas obtive misericórdia, porque agi por ignorância" (1Tm 1,13). Davi não pôde dizer: "Agi por ignorância". Não ignorava que grande pecado era tocar na mulher do próximo, e ainda matar o marido que desconhecia o fato, e por isso nem podia se encolerizar. Mas, conseguem a misericórdia do Senhor os que agem por ignorância, enquanto os que pecam conscientemente obtêm não qualquer uma, mas uma grande misericórdia.
7 - "Lava-me cada vez mais de minha injustiça". Por que razão: "cada vez mais?" Porque estava muito manchado. Cada vez mais lava os pecados de quem está ciente, enquanto lavas os pecados de quem está na ignorância. Nem assim deve-se desesperar de tua misericórdia. "E purifica-me de meu pecado". Por mérito de quem? Ele é médico e oferece a graça; é Deus, oferece o sacrifício. O que darás para seres purificado? Vê a quem hás de invocar. Invocas o justo, que odeia o pecado, pelo fato mesmo de ser justo. Pune o pecado, se é justo. Não podes subtrair de Deus a sua justiça. Implora a misericórdia, mas espera a justiça. É próprio da misericórdia perdoar o pecador e peculiar à justiça castigar o pecado. E então? Buscas a misericórdia e o pecado ficará impune? Responderá Davi, responderão os decaídos, responderão com Davi para merecerem a mesma misericórdia que ele, e digam: Não Senhor, meu pecado não ficará impune. Conheço a justiça daquele cuja misericórdia procuro. Não ficará impune, mas não quero que tu me castigues, porque me arrependo de meu pecado. Peço que perdoes, porque reconheço meu pecado.
8 - "Reconheço a minha iniquidade e o meu pecado está sempre diante de mim". Não deixei para trás o que fiz, não olho os outros, esquecido de mim mesmo, não tento retirar o argueiro do olho de meu irmão, quando tenho uma trave nos meus (Mt 7,3). Meu pecado está a minha frente, não nas costas. Estava atrás de mim quando me foi enviado o profeta, e me propôs a parábola da ovelha do pobre. Disse o profeta Natan a Davi: "Um homem rico possuía ovelhas em grande número. Um pobre, seu vizinho, tinha só uma ovelha. Ele a criara junto de si e a alimentava com a sua comida. Um hóspede veio à casa do homem rico, que nada quis tirar de seu rebanho. Tomou a ovelhinha do pobre e a preparou para sua visita. De que é digno?" Davi, então, irado proferiu a sentença. De fato, o rei sem saber em que laço caíra, proferiu sentença de morte para o rico, que devia devolver a ovelha em quádruplo (2Rs 12,2-6). Sentença muito severa, no entanto, justíssima. Mas seu pecado ainda não estava diante dele. Achava-se atrás dele o que cometera. Ainda não reconhecia sua iniquidade, e por isto não perdoava a alheia. O profeta, contudo, que para tal fora enviado, tirou o pecado de suas costas, e colocou-o diante de seus olhos, para que visse que proferia sentença tão severa contra si mesmo. Transformou a língua dele num bisturi para cortar e curar a ferida que ele tinha no coração. Igualmente, assim agiu o Senhor com os judeus, quando lhe apresentaram a mulher adúltera, propondo-lhe uma cilada, mas quem nela caiu foram eles mesmos. Disseram: "Esta mulher foi surpreendida em adultério. Moisés nos ordena apedrejar tais mulheres. Tu, porém, que dizes?" Eles tentavam apanhas a Sabedoria de Deus numa cilada ambivalente. Se o Senhor mandasse matá-la, perderia a fama de mansidão; se ordenasse que a despedissem livre, incorreria na calúnia de ser censor da lei. Sua resposta foi a seguinte: Não disse: Matai; não disse, Soltai, mas: "Quem dentre vós não tem pecado, seja o primeiro a lhe atirar a pedra". É justa a lei que ordena se mate uma adúltera; mas esta lei justa pede ministros inocentes. Ponderai quem é que apresentais, mas atendei também no que sois. "Eles, porém, ouvindo isso, saíram um após o outro. Ficaram a adúltera e o Senhor", restaram a mulher ferida e o médico, a grande miséria e a grande misericórdia. Os que a apresentaram encheram-se de vergonha, mas não pediram perdão; a que fora levada perante o Senhor, confundiu-se e foi curada. Disse-lhe o Senhor: "Mulher, ninguém te condenou? Disse ela; Ninguém, Senhor. Disse, então Jesus: Nem eu te condeno. Vai, e de agora em diante não peques mais" (Jo 8,4-11). Por acaso, Cristo agiu contra a sua Lei? Pois, o Pai não dera a Lei sem o Filho. Se por ele foram feitos o céu, a terra e tudo o que eles contêm, como a Lei seria promulgada sem o Verbo de Deus? Nem Deus, nem o imperador agem contra as suas próprias leis quando dão perdão aos faltosos que confessarem. Moisés é ministro da Lei, mas Cristo é promulgador da Lei. Moisés manda apedrejar, enquanto é juiz, ao invés, Cristo, como rei, dá o perdão. Deus, portanto, dela se compadeceu em sua grande misericórdia, conforme ela aqui roga, pede, exclama, lamenta. Isto não quiseram fazer os que apresentaram a adúltera. Reconheceram o médico, porque lhe mostraram o ferimento, mas não procuraram dele o remédio. Desta maneira agem muitos que não se envergonham de pecar, mas têm vergonha de fazer penitência. Oh! Incrível loucura! Não te coras da ferida, e tens vergonha das faixas? Porventura não é mais fétida e pútrida quando está descoberta? Refugia-te, portanto, junto do médico, faze penitência, dizendo: "Reconheço a minha iniquidade e o meu pecado está sempre diante de mim".
9 - "Só contra ti pequei e fiz o mal diante de ti". Qual o sentido desta palavra? Não fora diante dos homens que Davi cometeu adultério e matou o marido desta mulher? Todos não souberam do ato de Davi? Por que então: "Só contra ti pequei e fiz o mal diante de ti?" Porque és o único sem pecado. Só é justo para punir aquele que em nada merece ser castigado; é justo censor pois não tem em si algo de repreensível. "Só contra ti pequei e fiz o mal diante de ti; para que te justifiques em tuas palavras e venças ao seres julgado". É difícil, irmãos, saber a quem são dirigidas estas palavras. O salmista fala, em verdade, a Deus, e é claro que Deus Pai não foi julgado. O que significa: "Só contra ti pequei e fiz o mal diante de ti; para que te justifiques em tuas palavras e venças ao seres julgado?" Ele vê que o futuro juiz deve ser o primeiro julgado, o justo julgado pelos pecadores, e nisto mesmo seria vencedor, porque não havia nele o que julgar. Somente entre os homens pôde dizer com verdade o homem Deus: Se encontraste pecado em mim, declarai-o (Jo 8,46). Mas existiria algo de oculto aos homens, e estes não descobriam o que de fato havia, porque não era evidente? Em outra passagem afirma o perspicaz examinador de todos os pecados: "O príncipe do mundo vem". Declara: "O príncipe do mundo vem", o príncipe da morte, a infligir a morte aos pecadores, pois, a morte entrou no mundo pela inveja do diabo (Sb 2,24). "O príncipe do mundo vem" (disse o Senhor, quando a paixão estava próxima); "contra mim ele nada pode", não encontrará pecado algum, nada que mereça a morte, nem condenação. Seria como se lhe dissesse alguém: Então, por que hás de morrer? Prossegue: "Mas o mundo saberá que faço como o Pai me ordenou. Levantai-vos! Partamos daqui!" (Jo 14, 30.31). Sofro, diz ele, sem merecer pelos que merecem a morte, para torná-los dignos de minha vida, pois indignamente sofro a morte em seu favor. O profeta Davi diz então a este que não tem pecado algum: "Só contra ti pequei e fiz o mal diante de ti; para que te justifiques em tuas palavras e venças ao seres julgado". Superas todos os homens, todos os juízes, e quem se reputa por justo, que foste injustamente julgado, que tens o poder de entregar a tua vida e poder de novamente retomá-la (Jo 10,18). Vences, portanto, ao seres julgado. Superas a todos os homens; és mais do que todos eles, que por ti foram feitos.
10 - "Só contra ti pequei e fiz o mal diante de ti; para que te justifiques em tuas palavras e venças ao seres julgado. Eis que fui concebido em iniquidade". Seria como se dissesse: São vencidos os que fizeram como tu, Davi. Não é pequeno mal, pequeno pecado, cometer adultério com homicídio. Que acontece aos que desde o nascimento, desde que saíram do seio de sua mãe, nada fizeram de semelhante? Também a estes imputas alguns pecados, de sorte que o Senhor supere a todos, ao começar a ser julgado? Davi faz o papel de todo o gênero humano, pondera os vínculos de todos, considera a propagação da morte, nota a origem da iniquidade, e diz: "Eis que fui concebido em iniquidade". Por acaso nascera Davi de um adultério? Nascerá de Jessé, homem justo e de sua esposa (1Rs 16,18). Por que razão diz que foi concebido em iniquidade, senão porque contraiu o pecado original de Adão? A própria necessidade da morte liga-se ao pecado. Ninguém nasce sem contrair a culpa, a pena. Diz em outra passagem o profeta: "Ninguém é puro em tua presença, nem a criança de um dia de vida sobre a terra" (Jó 14,4). Mas, sabemos que no batismo de Cristo os pecados são perdoados, e que este batismo vale para a remissão dos pecados. Se as crianças são inteiramente inocentes, porque as mães correm para a igreja quando elas adoecem? Que pecado apaga aquele batismo, a que se refere aquele perdão? Vejo a criança inocente a chorar, não a se encolerizar. Que lava o batismo? Que dívida se paga com aquela graça? Apaga-se a propagação do pecado. Se aquela criança pudesse falar, te diria, e se já tivesse o entendimento que possuía Davi, te responderia: O que observas em mim, que sou uma criança? É verdade que não vês pecados que tenha cometido, mas fui concebido em iniquidade e "em pecado me gerou minha mãe". Isento deste vínculo da concupiscência carnal, nasceu Cristo não de um varão, mas de uma virgem que concebeu por obra do Espírito Santo. Dele não se pode dizer que foi concebido em iniquidade; não se pode dizer: Sua mãe o gerou em pecado. A ela foi dito: "O Espírito Santo virá sobre ti, e o poder do Altíssimo vai te cobrir com a sua sombra" (Lc 1,35). Por conseguinte, não se diz que os homens são concebidos em iniquidade e em pecado são gerados pelas mães porque seria pecado a união dos cônjuges, mas porque a geração se produz numa carne sujeita à pena devida ao pecado. O castigo da carne é a morte, e de fato nela é inerente a própria mortalidade. Daí decorre que o Apóstolo não afirma que o corpo há de morrer, mas que está morto. Diz ele: "O corpo está morto, pelo pecado, mas o espírito é vida, pela justiça" (Rm 8,10). Como então, nasceria sem o vínculo do pecado quem é concebido e gerado de um corpo morto pelo pecado? A casta união conjugal não é culpada, mas o pecado original acarreta a merecida pena. O marido não é mortal enquanto tal, mas devido ao pecado. O Senhor também era mortal, mas não por causa de algum pecado. Aceitou a pena que merecíamos, e assim apagou a nossa culpa. Com razão, portanto, todos morrem em Adão, ma em Cristo todos são vivificados (1Cor 15,22). "Eis porque", diz o Apóstolo, "por meio de um só homem o pecado entrou no mundo, e pelo pecado a morte, e assim a morte passou a todos os homens, porque nele todos pecaram" (Rm 5,12). Está bem delimitada a questão: Em Adão todos pecaram. Excetua-se apenas a criança inocente que não nasceu com o pecado de Adão.
11 - "Eis que amaste a verdade. Tu me revelaste as coisas incertas e recônditas de tua sabedoria. Amaste a verdade", isto é, não deixaste impunes os pecados, nem mesmo daqueles a quem perdoaste. "Amaste a verdade". Concedeste misericórdia, contudo conservaste a verdade. Perdoas àquele que confessa. perdoas, mas ao penitente. Assim se preserva a misericórdia unida à verdade. Misericórdia porque o homem é libertado; verdade porque o pecado é punido. "Eis que amaste a verdade. Tu me revelaste as coisas incertas e recônditas de tua sabedoria". Por que motivo "recônditas?" Por que "incertas?" Porque até a estes Deus perdoa. Nada de tão oculto, nada de tão incerto. Diante desta incerteza, os ninivitas fizeram penitência. Declararam, disseram a si mesmos que deviam pedir misericórdia, apesar das ameaças do profeta, apesar de seu aviso: "Ainda três dias, e Nínive será destruída". Perguntaram-se uns aos outros: "Quem sabe? Talvez Deus volte atrás, arrependa-se e se compadeça". Estavam na incerteza, pois diziam: "Quem sabe?" Na dúvida, fizeram penitência e mereceram misericórdia segura. Prostraram-se com lágrimas, jejuns, cilício e cinza, gemeram, choraram e Deus os poupou (Jn 3, 4-10). Nínive ficou de pé, ou foi destruída? Os homens vêem de um modo e Deus de outro. Penso que se cumpriu o que o profeta predissera. Pondera o que foi Nínive, e vê que foi destruída, derrubada relativamente ao mal, edificada no tocante ao bem, assim como Saulo, o perseguidos, foi derrubado e ergueu-se Paulo, o pregador (At 9,4). Quem não diria que à nossa cidade seria uma felicidade ser destruída de sorte que todos os insensatos deixassem suas futilidades, e acorressem à igreja contritos, pedindo a misericórdia de Deus em relação a seus pecados passados? Não diríamos: Onde está aquela Cartago? Como não é mais o que fora, foi destruída; mas se ela se tornou o que não era, foi edificada. Por esta razão é que foi dito a Jeremias: "Eu te constituo para arrancar e para destruir, para exterminar e para demolir, para construir e para plantar" (Jr 1,10). Daí também aquela palavra do Senhor: "Sou eu quem fere e torno a curar" (Dt 32,39). Fere, extrai a podridão do crime, cura a dor da ferida. Assim fazem os médicos, que cortam, extraem, curam. Armam-se para ferir, usam o bisturi para curar. Mas como os pecados dos ninivitas eram grandes, eles disseram: "Quem sabe?" Essa incerteza Deus tirara de seu servo Davi. Ao responder ele, ao profeta que estava em sua presença e o arguia: "Pequei", logo ouviu o profeta, isto é, do Espírito de Deus que estava no profeta: "O Senhor perdoa a tua falta" (2Rs 12,13). Ele lhe revelou as coisas incertas e recônditas de sua sabedoria.
12 - "Aspergir-me-ás com o hissopo e serei purificado". Sabemos que o hissopo é uma erva insignificante, mas medicinal; suas raízes aderem às pedras. Daí se tirou a comparação, o símbolo da purificação do coração. Também tu firma-te na raiz do amor, a tua pedra. Sê humilde, unida a teu Deus humilde, para que sejas sublime em teu Deus glorificado. Serás aspergido com o hissopo; a humildade de Cristo te purificará. Não desprezes a erva; ao invés, atende à virtude do medicamento. Direi ainda alguma coisa que costumamos ouvir dos médicos, ou experimentar nos doentes. Diz-se que o hissopo é apto a purificar os pulmões. Os pulmões costumam assinalar a soberba. Dali parte o inchaço, o hálito. Foi dito de Saulo, o perseguidor, como sendo Saulo soberbo, que partira para prender os cristãos, respirando morticínio (At 9,1). Respirava morticínio, desejava derramar sangue, tinha os pulmões não purificados. Escuta-o agora, humilde porque foi purificado por meio do hissopo: "Aspergi-me-ás com o hissopo e serei purificado: lavar-me-ás e ficarei mais alvo do que a neve", isto é, purificar-me-ás. Diz o profeta: "Mesmo que os vossos pecados sejam como escarlate, tornar-se-ão alvos como a neve" (Is 1,18). É destes fiéis que Cristo tece a veste sem mancha nem ruga (Ef 5,27). Por este motivo, a sua veste no monte, que brilhou ficando alva como a neve (Mt 17,2), representava a Igreja purificada de toda mácula de pecado.
13 - Mas por que o hissopo figura a humildade?
2 - Este é o teor do título: "Salmo de Davi. Quando veio ter com ele o profeta Natan, depois que se unira com Bersabéia". Era mulher casada. Devemos falar com dor e tremor; todavia, Deus não quis se calasse o que fez ser escrito. Direi, portanto, não exortando à imitação, mas instruindo para incutir temor. O rei e profeta Davi, a cuja estirpe, segundo a carne, pertenceria o Senhor, seduzido pela beleza dessa mulher, desposada a outro, com ela cometeu adultério. Este salmo não o narra, mas alude a isto o título. No livro dos Reis, porém, conta-se tudo por extenso. Ambas as Escrituras são canônicas, ambas sem dúvida alguma devem ser utilizadas pelos fiéis. O pecado foi cometido e isso está escrito. Davi mandou matar o marido de Bersabéia na guerra. Acrescentou um homicídio ao adultério. Depois de cometer este pecado foi-lhe enviado o profeta Natan, da parte de Deus, que o arguiu de tão grande crime.
3 - Declaramos o que devem os homens evitar. Ouçamos a quem hão de imitar se tiverem caído. Muitos querem cais com Davi, mas não querem se levantar com ele. Não é exemplo de queda que te é proposto, e sim de como te reerguer se tiveres caído. Cuidado para não cair. A queda dos grandes não deve dar prazer aos menores, mas sirva a sua queda para incutir temos aos que estão abaixo. Foi para isto que foi proposto, que foi escrito, para isto na Igreja frequentemente é lido e cantado. Escutem os que não caíram, a fim de evitar a queda, ouçam os que caíram para se levantarem. Não se calou o pecado de tão grande varão. É anunciado na igreja. Os maus ouvintes escutam e procuram nisso uma defesa de seus pecados. Prestam atenção no modo de defender o pecado que decidiram cometer, ao invés de se precaverem do que não cometeram, e dizem a si mesmos: Se Davi assim agiu, por que não posso também eu? Por esta razão, a alma se torna pior do que Davi, querendo agir assim visto que Davi o fez; seu pecado é pior do que o de Davi. Vou explicar melhor, se puder. Davi não tomara a outro por exemplo, como tu. Caíra por ceder à concupiscência, e não por pretexto de não ser pecado, porque ele é santo, mas a fim de pecares. Não imitas a sua santidade, mas imitas sua queda. Amas em Davi o que ele mesmo odiou em si. Preparas-te para pecar, decides pecar. Examinas o Livro de Deus para pecar. ouves as Sagradas Escrituras a fim de praticar aquilo que desagrada a Deus. Não foi assim que agiu Davi. Foi repreendido pelo profeta, mas não caiu como profeta. Alguns, contudo, escutam de modo salutar, e vendo a queda de um forte medem melhor a sua fraqueza; desejosos de evitar o que Deus condena, com segurança moderam seus olhares. Não fixam os olhos na beleza carnal, imaginando por perversa simplicidade que estão firmes. Não dizem: Olhei com boa intenção, olhei por amizade, com benevolência olhei longamente. Pensam na queda de Davi. Reconhecendo que são pequenos não querem ver o que pode fazê-los cair, por vêem que o grande caiu. Reprimem os olhos da insolência, não se reúnem facilmente com as mulheres dos outros, não se detém no meio delas, não dirigem os olhos para as sacadas e terraços vizinhos. Pois, Davi viu de longe aquele que o prendeu. A mulher estava longe, mas a concupiscência estava perto. Fora dele estava o que ele via, mas dentro de si tinha o que o faria cair. Faz-se mister precaver-se desta fraqueza da carne, recordando-se do que disse o Apóstolo: "O pecado não impere mais em vosso corpo mortal" (Rm 6,12). Não disse: Não exista, mas: "não impere". O pecado está aí, quando sentes; mas só impera se consentires. Há de ser refreada e não seguida a deleitação carnal, principalmente quando se estender a objetos ilícitos e alheios. Deve ser domada pela vontade, e não se tornar voluntária. Olha sem receio, se não atinge teus sentimentos. Mas, podes replicar: Fico firme. Acaso és mais forte do que Davi?
4 - Tal exemplo serve de aviso, para que ninguém se orgulhe na prosperidade. Muitos receiam a adversidade, mas não temem a prosperidade. No entanto, a prosperidade é mais perigosa para a alma do que a adversidade para o corpo. A prosperidade primeiro corrompe a alma e depois a adversidade a encontra num estado de fragilidade. Meus irmãos, vigiai atentamente contra a felicidade. Por isso, vede como a palavra de Deus nos previne contra a segurança em nossa felicidade: "Servi ao Senhor com temor e exultai diante dele com temor" (Sl 2,11). Com exultação, demos graças; com temor de cair. Davi não pecou enquanto sofria a perseguição de Saul. Quando o santo profeta Davi sofria a inimizade de Saul, quando estava angustiado por suas perseguições, quando fugia por diversas regiões para não cair nas mãos do rei, não desejou a mulher do próximo, nem matou o marido depois de ter cometido adultério com a mulher (1Rs 24,5; 26,9). Na fraqueza de sua tribulação estava tanto mais atento ao que Deus manda quanto mais infeliz se via. Determinadas tribulações são úteis. É útil a ferramenta do médico. Muito mais do que a tentação do diabo. Davi se tornou seguro de si depois de vencer os inimigos; a angústia passou e o orgulho cresceu. Valha-nos, pois, este exemplo para termos receio da felicidade. Diz o salmista: "Encontrei a tribulação e a dor e invoquei o nome do Senhor" (Sl 114,3.4).
5 - Mas isto sucedeu. Diria tais coisas aos que não cometeram tal pecado para que guardem vigilantes sua integridade e vendo a queda de um grande, os pequenos sintam medo. Todavia, se alguém houver caído e ouve estas coisas, tendo na consciência uma culpa, preste atenção às palavras deste salmo: verifique o tamanho da ferida, mas não perca a esperança no poder do médico. Cair no desespero por causa do pecado é morte certa. Por conseguinte, ninguém diga: Se cometi algum mal já estou condenado. Deus não perdoa esta espécie de pecados; porque não continuarei a pecar? Gozarei com delícia neste mundo, com lascívia, com desejos impuros; tendo já perdido a esperança de conversão, tenha ao menos o que vejo, uma vez que não poderei ter o que creio. Esta salmo, no entanto, como previne os que não caíram, igualmente não quer que desesperem os que pecaram. Quem quer que sejas que pecaste, e hesitas em fazer a penitência por teu pecado, desanimado relativamente a tua salvação, escuta Davi a gemer. Não te foi enviado o profeta Natan, mas o próprio Davi. Escuta-o a clamar, e clama com ele; escuta-o a gemer simultaneamente; escuta-o a chorar, e une as tuas lágrimas às dele; escuta-o emendado, e alegra-te com ele. Se não impediste o pecado, não se encerre para ti a esperança do perdão. A Davi foi enviado o profeta Natan. Observa a humildade do rei. Não repeliu as palavras de ordem; não repelei: Como ousas falar assim ao rei, que sou? Rei sublime, que ouviu a profeta, o povo humilde ouça a Cristo.
6 - Escuta, portanto, estas palavras, e repete com ele: "Piedade de mim, ó Deus, segundo a tua grande misericórdia". Quem suplica grande misericórdia confessa sua enorme miséria. Procurem menor misericórdia os que pecaram por ignorância. "Piedade de mim, ó Deus, segundo a tua grande misericórdia". Socorre ao gravemente ferido, com teus enérgicos medicamentos. Grave é minha doença, mas refugio-me no Onipotente. Perderia a esperança por causa de meu ferimento mortal se não encontrasse tão grande médico. "Piedade de mim, ó Deus, segundo a tua grande misericórdia; e com a abundância de tuas comiserações apaga a minha iniquidade. A paga a minha iniquidade" corresponde a "Piedade de mim, ó Deus". E "a abundância de tuas comiserações" equivale a "segundo a tua grande misericórdia"; e desta grande misericórdia derivam as muitas comiserações. Olhas os que desprezam para corrigi-los, voltas-te para os ignorantes para ensinar-lhes, atendes os pecadores para perdoá-los. Cometeu pecados por ignorância? Alguém os cometera, praticando muitos males: "Mas obtive misericórdia, porque agi por ignorância" (1Tm 1,13). Davi não pôde dizer: "Agi por ignorância". Não ignorava que grande pecado era tocar na mulher do próximo, e ainda matar o marido que desconhecia o fato, e por isso nem podia se encolerizar. Mas, conseguem a misericórdia do Senhor os que agem por ignorância, enquanto os que pecam conscientemente obtêm não qualquer uma, mas uma grande misericórdia.
7 - "Lava-me cada vez mais de minha injustiça". Por que razão: "cada vez mais?" Porque estava muito manchado. Cada vez mais lava os pecados de quem está ciente, enquanto lavas os pecados de quem está na ignorância. Nem assim deve-se desesperar de tua misericórdia. "E purifica-me de meu pecado". Por mérito de quem? Ele é médico e oferece a graça; é Deus, oferece o sacrifício. O que darás para seres purificado? Vê a quem hás de invocar. Invocas o justo, que odeia o pecado, pelo fato mesmo de ser justo. Pune o pecado, se é justo. Não podes subtrair de Deus a sua justiça. Implora a misericórdia, mas espera a justiça. É próprio da misericórdia perdoar o pecador e peculiar à justiça castigar o pecado. E então? Buscas a misericórdia e o pecado ficará impune? Responderá Davi, responderão os decaídos, responderão com Davi para merecerem a mesma misericórdia que ele, e digam: Não Senhor, meu pecado não ficará impune. Conheço a justiça daquele cuja misericórdia procuro. Não ficará impune, mas não quero que tu me castigues, porque me arrependo de meu pecado. Peço que perdoes, porque reconheço meu pecado.
8 - "Reconheço a minha iniquidade e o meu pecado está sempre diante de mim". Não deixei para trás o que fiz, não olho os outros, esquecido de mim mesmo, não tento retirar o argueiro do olho de meu irmão, quando tenho uma trave nos meus (Mt 7,3). Meu pecado está a minha frente, não nas costas. Estava atrás de mim quando me foi enviado o profeta, e me propôs a parábola da ovelha do pobre. Disse o profeta Natan a Davi: "Um homem rico possuía ovelhas em grande número. Um pobre, seu vizinho, tinha só uma ovelha. Ele a criara junto de si e a alimentava com a sua comida. Um hóspede veio à casa do homem rico, que nada quis tirar de seu rebanho. Tomou a ovelhinha do pobre e a preparou para sua visita. De que é digno?" Davi, então, irado proferiu a sentença. De fato, o rei sem saber em que laço caíra, proferiu sentença de morte para o rico, que devia devolver a ovelha em quádruplo (2Rs 12,2-6). Sentença muito severa, no entanto, justíssima. Mas seu pecado ainda não estava diante dele. Achava-se atrás dele o que cometera. Ainda não reconhecia sua iniquidade, e por isto não perdoava a alheia. O profeta, contudo, que para tal fora enviado, tirou o pecado de suas costas, e colocou-o diante de seus olhos, para que visse que proferia sentença tão severa contra si mesmo. Transformou a língua dele num bisturi para cortar e curar a ferida que ele tinha no coração. Igualmente, assim agiu o Senhor com os judeus, quando lhe apresentaram a mulher adúltera, propondo-lhe uma cilada, mas quem nela caiu foram eles mesmos. Disseram: "Esta mulher foi surpreendida em adultério. Moisés nos ordena apedrejar tais mulheres. Tu, porém, que dizes?" Eles tentavam apanhas a Sabedoria de Deus numa cilada ambivalente. Se o Senhor mandasse matá-la, perderia a fama de mansidão; se ordenasse que a despedissem livre, incorreria na calúnia de ser censor da lei. Sua resposta foi a seguinte: Não disse: Matai; não disse, Soltai, mas: "Quem dentre vós não tem pecado, seja o primeiro a lhe atirar a pedra". É justa a lei que ordena se mate uma adúltera; mas esta lei justa pede ministros inocentes. Ponderai quem é que apresentais, mas atendei também no que sois. "Eles, porém, ouvindo isso, saíram um após o outro. Ficaram a adúltera e o Senhor", restaram a mulher ferida e o médico, a grande miséria e a grande misericórdia. Os que a apresentaram encheram-se de vergonha, mas não pediram perdão; a que fora levada perante o Senhor, confundiu-se e foi curada. Disse-lhe o Senhor: "Mulher, ninguém te condenou? Disse ela; Ninguém, Senhor. Disse, então Jesus: Nem eu te condeno. Vai, e de agora em diante não peques mais" (Jo 8,4-11). Por acaso, Cristo agiu contra a sua Lei? Pois, o Pai não dera a Lei sem o Filho. Se por ele foram feitos o céu, a terra e tudo o que eles contêm, como a Lei seria promulgada sem o Verbo de Deus? Nem Deus, nem o imperador agem contra as suas próprias leis quando dão perdão aos faltosos que confessarem. Moisés é ministro da Lei, mas Cristo é promulgador da Lei. Moisés manda apedrejar, enquanto é juiz, ao invés, Cristo, como rei, dá o perdão. Deus, portanto, dela se compadeceu em sua grande misericórdia, conforme ela aqui roga, pede, exclama, lamenta. Isto não quiseram fazer os que apresentaram a adúltera. Reconheceram o médico, porque lhe mostraram o ferimento, mas não procuraram dele o remédio. Desta maneira agem muitos que não se envergonham de pecar, mas têm vergonha de fazer penitência. Oh! Incrível loucura! Não te coras da ferida, e tens vergonha das faixas? Porventura não é mais fétida e pútrida quando está descoberta? Refugia-te, portanto, junto do médico, faze penitência, dizendo: "Reconheço a minha iniquidade e o meu pecado está sempre diante de mim".
9 - "Só contra ti pequei e fiz o mal diante de ti". Qual o sentido desta palavra? Não fora diante dos homens que Davi cometeu adultério e matou o marido desta mulher? Todos não souberam do ato de Davi? Por que então: "Só contra ti pequei e fiz o mal diante de ti?" Porque és o único sem pecado. Só é justo para punir aquele que em nada merece ser castigado; é justo censor pois não tem em si algo de repreensível. "Só contra ti pequei e fiz o mal diante de ti; para que te justifiques em tuas palavras e venças ao seres julgado". É difícil, irmãos, saber a quem são dirigidas estas palavras. O salmista fala, em verdade, a Deus, e é claro que Deus Pai não foi julgado. O que significa: "Só contra ti pequei e fiz o mal diante de ti; para que te justifiques em tuas palavras e venças ao seres julgado?" Ele vê que o futuro juiz deve ser o primeiro julgado, o justo julgado pelos pecadores, e nisto mesmo seria vencedor, porque não havia nele o que julgar. Somente entre os homens pôde dizer com verdade o homem Deus: Se encontraste pecado em mim, declarai-o (Jo 8,46). Mas existiria algo de oculto aos homens, e estes não descobriam o que de fato havia, porque não era evidente? Em outra passagem afirma o perspicaz examinador de todos os pecados: "O príncipe do mundo vem". Declara: "O príncipe do mundo vem", o príncipe da morte, a infligir a morte aos pecadores, pois, a morte entrou no mundo pela inveja do diabo (Sb 2,24). "O príncipe do mundo vem" (disse o Senhor, quando a paixão estava próxima); "contra mim ele nada pode", não encontrará pecado algum, nada que mereça a morte, nem condenação. Seria como se lhe dissesse alguém: Então, por que hás de morrer? Prossegue: "Mas o mundo saberá que faço como o Pai me ordenou. Levantai-vos! Partamos daqui!" (Jo 14, 30.31). Sofro, diz ele, sem merecer pelos que merecem a morte, para torná-los dignos de minha vida, pois indignamente sofro a morte em seu favor. O profeta Davi diz então a este que não tem pecado algum: "Só contra ti pequei e fiz o mal diante de ti; para que te justifiques em tuas palavras e venças ao seres julgado". Superas todos os homens, todos os juízes, e quem se reputa por justo, que foste injustamente julgado, que tens o poder de entregar a tua vida e poder de novamente retomá-la (Jo 10,18). Vences, portanto, ao seres julgado. Superas a todos os homens; és mais do que todos eles, que por ti foram feitos.
10 - "Só contra ti pequei e fiz o mal diante de ti; para que te justifiques em tuas palavras e venças ao seres julgado. Eis que fui concebido em iniquidade". Seria como se dissesse: São vencidos os que fizeram como tu, Davi. Não é pequeno mal, pequeno pecado, cometer adultério com homicídio. Que acontece aos que desde o nascimento, desde que saíram do seio de sua mãe, nada fizeram de semelhante? Também a estes imputas alguns pecados, de sorte que o Senhor supere a todos, ao começar a ser julgado? Davi faz o papel de todo o gênero humano, pondera os vínculos de todos, considera a propagação da morte, nota a origem da iniquidade, e diz: "Eis que fui concebido em iniquidade". Por acaso nascera Davi de um adultério? Nascerá de Jessé, homem justo e de sua esposa (1Rs 16,18). Por que razão diz que foi concebido em iniquidade, senão porque contraiu o pecado original de Adão? A própria necessidade da morte liga-se ao pecado. Ninguém nasce sem contrair a culpa, a pena. Diz em outra passagem o profeta: "Ninguém é puro em tua presença, nem a criança de um dia de vida sobre a terra" (Jó 14,4). Mas, sabemos que no batismo de Cristo os pecados são perdoados, e que este batismo vale para a remissão dos pecados. Se as crianças são inteiramente inocentes, porque as mães correm para a igreja quando elas adoecem? Que pecado apaga aquele batismo, a que se refere aquele perdão? Vejo a criança inocente a chorar, não a se encolerizar. Que lava o batismo? Que dívida se paga com aquela graça? Apaga-se a propagação do pecado. Se aquela criança pudesse falar, te diria, e se já tivesse o entendimento que possuía Davi, te responderia: O que observas em mim, que sou uma criança? É verdade que não vês pecados que tenha cometido, mas fui concebido em iniquidade e "em pecado me gerou minha mãe". Isento deste vínculo da concupiscência carnal, nasceu Cristo não de um varão, mas de uma virgem que concebeu por obra do Espírito Santo. Dele não se pode dizer que foi concebido em iniquidade; não se pode dizer: Sua mãe o gerou em pecado. A ela foi dito: "O Espírito Santo virá sobre ti, e o poder do Altíssimo vai te cobrir com a sua sombra" (Lc 1,35). Por conseguinte, não se diz que os homens são concebidos em iniquidade e em pecado são gerados pelas mães porque seria pecado a união dos cônjuges, mas porque a geração se produz numa carne sujeita à pena devida ao pecado. O castigo da carne é a morte, e de fato nela é inerente a própria mortalidade. Daí decorre que o Apóstolo não afirma que o corpo há de morrer, mas que está morto. Diz ele: "O corpo está morto, pelo pecado, mas o espírito é vida, pela justiça" (Rm 8,10). Como então, nasceria sem o vínculo do pecado quem é concebido e gerado de um corpo morto pelo pecado? A casta união conjugal não é culpada, mas o pecado original acarreta a merecida pena. O marido não é mortal enquanto tal, mas devido ao pecado. O Senhor também era mortal, mas não por causa de algum pecado. Aceitou a pena que merecíamos, e assim apagou a nossa culpa. Com razão, portanto, todos morrem em Adão, ma em Cristo todos são vivificados (1Cor 15,22). "Eis porque", diz o Apóstolo, "por meio de um só homem o pecado entrou no mundo, e pelo pecado a morte, e assim a morte passou a todos os homens, porque nele todos pecaram" (Rm 5,12). Está bem delimitada a questão: Em Adão todos pecaram. Excetua-se apenas a criança inocente que não nasceu com o pecado de Adão.
11 - "Eis que amaste a verdade. Tu me revelaste as coisas incertas e recônditas de tua sabedoria. Amaste a verdade", isto é, não deixaste impunes os pecados, nem mesmo daqueles a quem perdoaste. "Amaste a verdade". Concedeste misericórdia, contudo conservaste a verdade. Perdoas àquele que confessa. perdoas, mas ao penitente. Assim se preserva a misericórdia unida à verdade. Misericórdia porque o homem é libertado; verdade porque o pecado é punido. "Eis que amaste a verdade. Tu me revelaste as coisas incertas e recônditas de tua sabedoria". Por que motivo "recônditas?" Por que "incertas?" Porque até a estes Deus perdoa. Nada de tão oculto, nada de tão incerto. Diante desta incerteza, os ninivitas fizeram penitência. Declararam, disseram a si mesmos que deviam pedir misericórdia, apesar das ameaças do profeta, apesar de seu aviso: "Ainda três dias, e Nínive será destruída". Perguntaram-se uns aos outros: "Quem sabe? Talvez Deus volte atrás, arrependa-se e se compadeça". Estavam na incerteza, pois diziam: "Quem sabe?" Na dúvida, fizeram penitência e mereceram misericórdia segura. Prostraram-se com lágrimas, jejuns, cilício e cinza, gemeram, choraram e Deus os poupou (Jn 3, 4-10). Nínive ficou de pé, ou foi destruída? Os homens vêem de um modo e Deus de outro. Penso que se cumpriu o que o profeta predissera. Pondera o que foi Nínive, e vê que foi destruída, derrubada relativamente ao mal, edificada no tocante ao bem, assim como Saulo, o perseguidos, foi derrubado e ergueu-se Paulo, o pregador (At 9,4). Quem não diria que à nossa cidade seria uma felicidade ser destruída de sorte que todos os insensatos deixassem suas futilidades, e acorressem à igreja contritos, pedindo a misericórdia de Deus em relação a seus pecados passados? Não diríamos: Onde está aquela Cartago? Como não é mais o que fora, foi destruída; mas se ela se tornou o que não era, foi edificada. Por esta razão é que foi dito a Jeremias: "Eu te constituo para arrancar e para destruir, para exterminar e para demolir, para construir e para plantar" (Jr 1,10). Daí também aquela palavra do Senhor: "Sou eu quem fere e torno a curar" (Dt 32,39). Fere, extrai a podridão do crime, cura a dor da ferida. Assim fazem os médicos, que cortam, extraem, curam. Armam-se para ferir, usam o bisturi para curar. Mas como os pecados dos ninivitas eram grandes, eles disseram: "Quem sabe?" Essa incerteza Deus tirara de seu servo Davi. Ao responder ele, ao profeta que estava em sua presença e o arguia: "Pequei", logo ouviu o profeta, isto é, do Espírito de Deus que estava no profeta: "O Senhor perdoa a tua falta" (2Rs 12,13). Ele lhe revelou as coisas incertas e recônditas de sua sabedoria.
12 - "Aspergir-me-ás com o hissopo e serei purificado". Sabemos que o hissopo é uma erva insignificante, mas medicinal; suas raízes aderem às pedras. Daí se tirou a comparação, o símbolo da purificação do coração. Também tu firma-te na raiz do amor, a tua pedra. Sê humilde, unida a teu Deus humilde, para que sejas sublime em teu Deus glorificado. Serás aspergido com o hissopo; a humildade de Cristo te purificará. Não desprezes a erva; ao invés, atende à virtude do medicamento. Direi ainda alguma coisa que costumamos ouvir dos médicos, ou experimentar nos doentes. Diz-se que o hissopo é apto a purificar os pulmões. Os pulmões costumam assinalar a soberba. Dali parte o inchaço, o hálito. Foi dito de Saulo, o perseguidor, como sendo Saulo soberbo, que partira para prender os cristãos, respirando morticínio (At 9,1). Respirava morticínio, desejava derramar sangue, tinha os pulmões não purificados. Escuta-o agora, humilde porque foi purificado por meio do hissopo: "Aspergi-me-ás com o hissopo e serei purificado: lavar-me-ás e ficarei mais alvo do que a neve", isto é, purificar-me-ás. Diz o profeta: "Mesmo que os vossos pecados sejam como escarlate, tornar-se-ão alvos como a neve" (Is 1,18). É destes fiéis que Cristo tece a veste sem mancha nem ruga (Ef 5,27). Por este motivo, a sua veste no monte, que brilhou ficando alva como a neve (Mt 17,2), representava a Igreja purificada de toda mácula de pecado.
13 - Mas por que o hissopo figura a humildade?
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