quinta-feira, 11 de agosto de 2016

Comentário ao Salmo 14


Salmo 14

1.Salmo de Davi. Senhor, quem há de morar em vosso tabernáculo? Quem habitará em vossa montanha santa?
2.O que vive na inocência e pratica a justiça, o que pensa o que é reto no seu coração,
3.cuja língua não calunia; o que não faz mal a seu próximo, e não ultraja seu semelhante.
4.O que tem por desprezível o malvado, mas sabe honrar os que temem a Deus; o que não retrata juramento mesmo com dano seu,
5.não empresta dinheiro com usura, nem recebe presente para condenar o inocente. Aquele que assim proceder jamais será abalado.

Meditação de São João Paulo II sobre o Salmo 14

A alegria dos que entram no templo

1. A tradição de Israel impôs ao hino de louvor agora proclamado o título de "Salmo para a todáh", isto é, para a ação de graças no cântico litúrgico, e por isso adapta-se bem à entoação das Laudes matutinas. Nos poucos versículos deste alegre hino podem identificar-se três elementos significativos, de forma que tornam espiritualmente frutuoso o seu uso por parte da comunidade orante cristã.

2. Antes de tudo, encontra-se o apelo premente à oração, claramente descrita na sua dimensão litúrgica. É suficiente enumerar os verbos usados no imperativo que marcam o Salmo e são acompanhados por indicações de ordem cultual: "Aclamai..., servi ao Senhor com alegria, vinde à sua presença com cânticos de júbilo! Sabei que o Senhor é Deus... Entrai nos seus pórticos com ação de graças, entrai nos seus átrios com louvores, glorificai e bendizei o seu nome" (vv. 2-4). Uma série de convites não só para entrar na área sagrada do templo através dos seus pórticos e átrios (cf. Sl 14, 1; 23, 3.7-10), mas também a cantar hinos jubilosos a Deus.

É uma espécie de fio constante de louvor que nunca se interrompe, exprimindo-se numa contínua profissão de fé e de amor. Um louvor que se eleva da terra para Deus, e que ao mesmo tempo alimenta a alma do crente.

3. Desejaria reservar outra pequena observação ao início do cântico, onde o Salmista chama toda a terra a aclamar o Senhor (cf. v. 1). Sem dúvida, o Salmo dedicará depois toda a sua atenção ao povo eleito, mas o horizonte envolvido no louvor é universal, como acontece muitas vezes no Saltério, sobretudo nos chamados "hinos ao Senhor e Rei" (cf. Sl 95-98). O mundo e a história não estão nas mãos do destino, da confusão, de uma necessidade cega. Pelo contrário, são governados por um Deus que é ao mesmo tempo misterioso, mas que também deseja que a humanidade viva, de modo estável, relações justas e autênticas. Ele "fixou o orbe, não vacilará, governa os povos com equidade... governará a terra com justiça, e os povos na Sua fidelidade" (Sl 95, 10.13).

4. Por conseguinte, estamos todos nas mãos de Deus, Senhor e Rei, e todos o celebramos, confiantes de que Ele não nos deixará cair das Suas mãos de Criador e de Pai. A esta luz, pode apreciar-se melhor o terceiro elemento significativo do Salmo. No centro do louvor que o Salmista coloca nos nossos lábios, encontra-se de facto uma espécie de profissão de fé, expressa mediante uma série de atributos que definem a realidade íntima de Deus. Este credo fundamental contém as seguintes afirmações: o Senhor é Deus, o Senhor é o nosso criador, nós somos o seu povo, o Senhor é bom, o seu amor é eterno, a sua fidelidade não tem fim (cf. vv. 3-5).

5. Tem-se, em primeiro lugar, uma renovada confissão de fé no único Deus, como nos é pedido pelo primeiro mandamento do Decálogo; "Eu sou o Senhor, teu Deus... não terás outro Deus além de Mim" (Êx 20, 2.3). E como se repete muitas vezes na Bíblia: "Reconhece, agora, e grava no teu coração, que só o Senhor é Deus e que não há outro" (Dt 4, 39). Depois, é proclamada a fé em Deus criador, fonte do ser e da vida. Segue-se a afirmação, expressa através da chamada "fórmula da aliança", da certeza que Israel tem da eleição divina: "pertencemos-Lhe, somos o Seu povo e as ovelhas do Seu rebanho" (v. 3). É uma certeza que os fiéis do novo Povo de Deus fazem sua, na consciência de constituírem a grei que o Pastor supremo das almas conduz aos prados eternos do céu (cf. 1 Pd 2, 25).

6. Depois da proclamação do Deus uno, criador e fonte da aliança, o retrato do Senhor cantado pelo nosso Salmo continua com uma meditação de três qualidades divinas, muitas vezes exaltadas no Saltério: a bondade, o amor misericordioso (hésed), e a fidelidade. São as três virtudes que caracterizam a aliança de Deus com o seu povo; elas exprimem um vínculo que jamais será violado, dentro do fluxo das gerações e apesar do rio lamacento dos pecados, das rebeliões e das infidelidades humanas. Com confiança serena no amor divino que nunca virá a faltar, o povo de Deus encaminha-se na história com as suas tentações e debilidades quotidianas.

E esta confiança far-se-á cântico, ao qual por vezes as palavras já não bastam, como observa Santo Agostinho: "Quanto mais aumentar a caridade, tanto mais te darás conta do que dizias e não dizias. Com efeito, antes de saborear determinadas coisas, pensavas que podias utilizar palavras para indicar Deus; ao contrário, quando começaste a saboreá-lo, apercebeste-te de que não és capaz de explicar adequadamente aquilo que sentes. Mas se te aperceberes de que não sabes exprimir com as palavras o que sentes, deverás, por isso, permanecer calado e não louvar?... Não, certamente. Não serás tão ingrato. A Ele devemos a honra, o respeito, o maior louvor... Ouve o Salmo: “Terra inteira, louva o Senhor”!". Compreenderás a alegria de toda a terra, se tu mesmo te alegras no Senhor" (Exposições sobre os Salmos III/1, Roma 1993, pág. 459).
(7 de novembro de 2001)

Comentário de Santo Agostinho:

1 - "Salmo de Davi". O título não oferece dificuldade. "Senhor, quem será hóspede em teu tabernáculo?" Embora tabernáculo também se aplique algumas vezes às moradas eternas, propriamente tabernáculo quer dizer tenda de campanha. Daí se denominarem contubernales, camaradas, os soldados que moram juntos na mesma tenda. Este sentido acha-se acentuado pelo fato de se dizer: "Quem habitará como hóspede?" durante algum tempo lutamos com o diabo e então precisamos de um tabernáculo para descansar. O tabernáculo significa principalmente a segurança que nos oferece a economia temporal, realizada em nosso favor, através da encarnação do Senhor. "E quem repousará em teu monte santo?" Aqui talvez já se trate da própria morada eterna, de modo que monte seria a supereminente caridade de Cristo, na vida eterna.
2 - "Quem caminha sem mácula e pratica a justiça". Propõe o que explanará em seguida.
3 - "Quem profere a verdade do fundo do coração". Alguns têm a verdade nos lábios, mas não no coração. Se alguém astutamente mostra um caminho errado, sabendo que ali existem ladrões e diz: Se fores por aqui, não há perigo de ladrões. E acontece que efetivamente não há ladrões por ali. Ele falou a verdade, mas não de coração. Pensava de modo diverso e falou a verdade, sem o saber. É, portanto, pouco proferir a verdade, se não for de coração. "E não cometeu dolo com a língua". A figura age dolosamente se a boca profere uma coisa e no coração está escondida outra. "Nem fez o mal ao próximo". É óbvio que se deve considerar próximo todos os homens. "Nem admitiu injúria contra o seu semelhante", quer dizer, não acreditou de bom grado ou temerariamente num delator.
4 - "Diante dele o maligno foi reduzido a nada". É perfeito se contra um homem o maligno nada pode. "Diante dele", isto é, conheça o homem, com toda certeza, que o maligno nada pode, a não ser que a alma se afaste da beleza eterna e imutável de seu Criador e se volte para a beleza da criatura, feita do nada. Mas é o próprio "Senhor quem glorifica aqueles que o temem". O temor do Senhor é o começo da sabedoria (Sl 110,10; Eclo 1,16). As palavras acima tratam dos perfeitos; as que agora o salmista vai proferir pertencem aos principiantes.
5 - "Jura ao próximo e não o engana. Não emprestou dinheiro com usura, nem recebeu dons contra inocentes". Não são atos grandiosos. Mas, quem não os pode praticar, muito menos dirá a verdade no coração, nem deixará de cometer dolo com a língua; mas dirá a verdade que tem no coração também com a língua: "Sim, sim. não, não" (Mt 5,37), e não há de fazer o mal ao próximo, a saber, a ninguém, nem admitir injúria contra o seu semelhante. São ações estas dignas de homens perfeitos, em cuja presença o maligno foi reduzido a nada. No entanto, também relativamente a obras menores, assim conclui: "Quem assim proceder, jamais será abalado", isto é, chegará às ações maiores, de grande e inabalável firmeza. Pois, não foi sem razão que os próprios tempos dos verbos variaram, de tal modo que na primeira conclusão se usou o pretérito, nesta, porém, o futuro, pois lá se dissera: "O maligno foi reduzido a nada diante dele", e aqui: "Não será abalado eternamente".





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