Salmo 140
1.Salmo de Davi. Senhor, eu vos chamo, vinde logo em meu socorro; escutai a minha voz quando vos invoco.
2.Que minha oração suba até vós como a fumaça do incenso, que minhas mãos estendidas para vós sejam como a oferenda da tarde.
3.Ponde, Senhor, uma guarda em minha boca, uma sentinela à porta de meus lábios.
4.Não deixeis meu coração inclinar-se ao mal, para impiamente cometer alguma ação criminosa. Não permitais que eu tome parte nos festins dos homens que praticam o mal.
5.Se o justo me bate é um favor, se me repreende é como perfume em minha fronte. Minha cabeça não o rejeitará; porém, sob seus golpes, apenas rezarei.
6.Seus chefes foram precipitados pelas encostas do rochedo, e ouviram quão brandas eram as minhas palavras.
7.Como a terra fendida e sulcada pelo arado, assim seus ossos se dispersam à beira da região dos mortos.
8.Pois é para vós, Senhor, que se voltam os meus olhos; eu me refugio junto de vós, não me deixeis perecer.
9.Guardai-me do laço que me armaram, e das ciladas dos que praticam o mal.
10.Caiam os ímpios, de uma vez, nas próprias malhas; quanto a mim, que eu escape são e salvo.
A oração em tempo de perigo
1. Nas catequeses anteriores lançamos um olhar de conjunto à estrutura e ao valor da Liturgia das Vésperas, a grande oração eclesial da tarde. Hoje pretendemos analisar o seu interior. Será como realizar uma peregrinação naquela espécie de "terra santa" constituída por Salmos e Cânticos.
Deter-nos-emos perante cada uma daquelas orações poéticas, que Deus selou com a sua inspiração. São as invocações que o próprio Senhor deseja que lhe sejam dirigidas. Por isso, ele gosta de as ouvir, sentindo vibrar nelas o coração dos seus amados filhos.
Iniciaremos com o Salmo 140, que abre as Vésperas do domingo da primeira das quatro semanas em que, depois do Concílio, foi articulada a oração nocturna da Igreja.
2. "Suba até Vós como incenso, a minha oração, as minhas mãos estendidas como a oferenda da tarde". O v. 2 deste Salmo pode ser considerado o sinal distintivo de todo o cântico e a justificação evidente do facto de ele ter sido colocado dentro da Liturgia das Vésperas. A ideia expressa reflecte o espírito da teologia profética que une intimamente o culto à vida, a oração à existência.
A mesma oração feita com um coração puro e sincero torna-se um sacrifício oferecido a Deus. Todo o ser da pessoa que reza se torna um acto sacrifical, aludindo assim a quanto sugere São Paulo quando convida os cristãos a oferecer os seus corpos como sacrifício vivo, santo, agradável a Deus: é este o sacrifício espiritual que Ele aceita (cf. Rm 12, 1).
As mãos elevadas na oração são uma ponte de comunicação com Deus, assim como a fumaça que sobe como perfume suave da vítima durante o rito sacrifical vespertino.
3. O Salmo continua assumindo a tonalidade de uma súplica, que nos foi transmitida por um texto que no original hebraico apresenta não poucas dificuldades e obscuridões interpretativas (sobretudo nos vv. 4-7).
Contudo, o sentido geral pode ser identificado e transformado em meditação e oração. Antes de mais, o orante suplica ao Senhor para que impeça que os seus lábios (cf. v. 3) e os sentimentos do seu coração sejam atraídos e seduzidos pelo mal e o induzam a realizar "acções criminosas" (cf. v. 4). De facto, palavras e obras são a expressão da opção moral da pessoa. É fácil que o mal exerça tanta atracção, a ponto de estimular o fiel a saborear "as delícias" que os pecadores podem oferecer, sentando-se à sua mesa, ou seja, participando das suas acções pervertidas.
O Salmo adquire quase o sabor de um exame de consciência, ao qual segue o compromisso de escolher sempre os caminhos de Deus.
4. Mas a este ponto, o orante tem um sobressalto que o faz sair de uma declaração apaixonada de recusa de qualquer cumplicidade com o ímpio: ele não deseja absolutamente ser hóspede do ímpio, nem permitir que o óleo perfumado reservado aos convidados de honra (cf. Sl 22, 5) confirme a sua conivência com quem pratica o mal (cf. Sl 140, 5). A fim de exprimir com maior veemência o seu afastamento radical do malvado, o Salmista proclama em relação a ele uma condenação indignada, expressa com o recurso colorido a imagens de juízo veemente.
Trata-se de uma das típicas imprecações do Saltério (cf. Sl 57 e 108), que têm por finalidade afirmar de maneira plástica e até pitoresca a hostilidade ao mal, a opção pelo bem e a certeza de que Deus intervém na história com o seu juízo de condenação severa da injustiça (cf. vv. 6-7).
5. O Salmo termina com uma última invocação confiante (cf. vv. 8-9): trata-se de um cântico de fé, de gratidão e de alegria, na certeza de que o fiel não será envolvido no ódio que os pervertidos lhe reservam e não cairá na cilada que lhe preparam, depois de ter notado a sua decidida opção pelo bem. Desta forma, o justo poderá superar incólume qualquer engano, como está escrito noutro Salmo: "A nossa vida escapou como um pássaro do laço do caçador; ao romper-se o laço nós pudemos escapar" (Sl 123, 7).
Concluímos a nossa leitura do Salmo 140 voltando à imagem inicial, a da oração da noite como sacrifício agradável a Deus. Um grande mestre espiritual que viveu entre o IV e o V século, João Cassiano, o qual, provindo do Oriente transcorreu na Gália meridional a última parte da sua vida, relia aquelas palavras em chave cristológica: "Nelas, de facto, podemos compreender de modo mais espiritual uma alusão ao sacrifício da noite, realizado pelo Senhor e Salvador durante a sua última ceia e entregue aos apóstolos, quando ele sancionava o início dos santos mistérios da Igreja, ou (podemos entrever uma menção) ao próprio sacrifício que ele, no dia seguinte, ofereceu à noite, em si mesmo, com a elevação das próprias mãos, sacrifício que se prolongará até ao fim dos séculos para a salvação do mundo inteiro" (As instituições cenobíticas, Abadia de Praglia, Pádua 1989, pág. 92).
PAPA JOÃO PAULO II
AUDIÊNCIA GERAL
Quarta-Feira, 5 de Novembro de 2003
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